Pirataria de alimentos e bebidas: veneno tolerado e patente parada no INPI

Surto de metanol escancara mercado clandestino que vai do leite ao whisky. E a solução brasileira segue sem proteção concedida.

Um surto de intoxicações por metanol revelou a face mais letal da pirataria no Brasil. Investigações apontam adulterações em produtos tão diversos quanto leite, creatina, whisky e whey protein, evidenciando a expansão de um mercado ilegal que mistura crime, omissão e veneno.

A responsabilidade civil e penal se estende por toda a cadeia, do fabricante ao ponto de venda. Enquanto isso, um teste químico criado por cientistas brasileiros, capaz de detectar metanol em minutos, aguarda há anos por exame de patente no INPI.


O herói do copo de leite e o mundo mais químico

Nos antigos filmes noir e westerns, o herói pedia um copo de leite ao chegar ao bar — um gesto de sobriedade e, muitas vezes, de autopreservação. Durante a Lei Seca nos Estados Unidos (1920–1933), bebidas clandestinas matavam discretamente com álcool industrial. Cem anos depois, o cenário mudou, mas o risco permanece.

Hoje, se o herói moderno pedir whisky, pode terminar cego ou morto. Se preferir leite, talvez intoxicado. E, se escolher apenas água, ainda corre o risco de uma longa temporada no banheiro. O mundo não ficou mais fácil — ficou mais químico. E mais amador.

Vivemos numa era em que os riscos já não vêm só do tráfico, mas de variações domésticas de Breaking Bad: laboratórios improvisados, receitas improvisadas e um mercado paralelo abastecido por lucro fácil, riscos ignorados e leis em atraso.

E a legislação, embora existente, ainda tropeça entre o crime e a burocracia para sua aplicação — e na lentidão do Congresso para seu fortalecimento.


Como se adultera uma cadeia inteira

A adulteração de alimentos e bebidas é um crime multifacetado: diluição com água, inserção de substâncias tóxicas, troca de rótulos, falsificação de lacres e ausência de princípios ativos em suplementos. Não se trata apenas de fraude comercial — o que já seria grave —, trata-se de risco à saúde pública, que tem levado pessoas à morte.

Essas práticas violam o Código Penal (arts. 270 a 275), a Lei da Propriedade Industrial (9.279/96) e o Código de Defesa do Consumidor. A produção ocorre em fábricas clandestinas, com insumos desviados e rotas de distribuição que simulam legalidade.


Operações policiais recentes: onde e como agiram os falsificadores

ProdutoOperação / AçãoLocal / DataDetalhes
Bebidas alcoólicasLaboratório de falsificaçãoDF, out. 2025PM apreende garrafas, químicos e equipamentos de envase.
Prisão de fornecedor de insumosSP, 3 out. 2025Comercializava tampas, rótulos e selos falsos.
Apreensão de milhares de garrafasSP, out. 20255 presos; falsificações de Antártica, Brahma e Original.
Leite e laticíniosOperação “Lac Purum”SP interior, out. 202542 agentes mobilizados; leite adulterado com aditivos químicos.
Prisões por soda cáusticaTaquara (RS), dez. 2024Empresa misturava soda e água oxigenada ao leite.
Leite Compen$ado IIRS, 202417 mandados em 6 cidades por fraude com sal e água.
Suplementos alimentares“Reis da Creatina”SP, nov. 2024Falsidade ideológica e lavagem de dinheiro em suplementos adulterados.

Quem responde? Toda a cadeia.

Responsabilidade civil e do consumidor

A responsabilidade é solidária: todos os elos — produtor, distribuidor, comerciante — respondem por danos causados ao consumidor (CDC, arts. 12, 14 e 18). O Código Civil (art. 927) reforça o dever de indenizar por ato ilícito, mesmo fora da relação de consumo.

Responsabilidade penal

Adulterar ou envenenar alimentos (arts. 272 e 270 do Código Penal) pode levar a até 15 anos de reclusão. O uso indevido de marcas e rótulos é crime contra a propriedade intelectual e contra as relações de consumo.

Responsabilidade administrativa

Anvisa, Procons e vigilâncias sanitárias podem interditar estabelecimentos, aplicar multas, determinar recalls e instaurar processos.

A legislação existe, o desafio é alcançar os infratores antes do dano, e puni-los exemplarmente depois dele.


Ciência nacional contra o metanol: pronta, barata, parada

Pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp) desenvolveram um kit portátil de detecção de metanol por método colorimétrico quantitativo. O teste custa cerca de R$10 por amostra, pode ser aplicado em campo e dispensa equipamentos laboratoriais complexos.

O pedido de patente da tecnologia foi depositado no INPI sob o número BR 10 2021 024797 5 A2, em 8 de dezembro de 2021, e publicado em 20 de junho de 2023.
Até hoje, segue sem exame técnico — e sem concessão.

Backlog no INPI: atraso que trava inovação — e pode custar vidas

Apesar de esforços recentes, o tempo médio para decisão em patentes no INPI ainda gira em torno de 5 a 6 anos, especialmente em áreas técnicas como química e biotecnologia.

No caso da tecnologia contra o metanol, esse atraso impede a comercialização em larga escala e a adoção por órgãos de fiscalização.

Programas de aceleração como o Patent Prosecution Highway (PPH) e o Programa Patentes Verdes reduzem prazos a menos de 14 meses, mas dependem de critérios específicos de elegibilidade — nem sempre aplicáveis a inovações emergenciais.


Reações e medidas emergenciais

Com o aumento dos casos, as autoridades reforçaram:

  • Operações conjuntas entre Polícia Federal, Receita e Anvisa
  • Rastreabilidade por QR Code e nota fiscal eletrônica
  • Campanhas educativas para consumidores e comerciantes
  • Ações judiciais privadas por empresas contra falsificadores
  • Quebra de vasilhames após o consumo — para evitar reaproveitamento de garrafas originais

Na Câmara, o PL 7.664/2017, que agrava penas por fraudes alimentares, voltou ao debate após anos de engavetamento — apesar dos inúmeros casos anuais.

Até quando nossos legisladores continuarão priorizando temas “hypados” enquanto ignoram desastres anunciados?


Entre o crime, o controle e a burocracia

Combater a pirataria de alimentos e bebidas é, hoje, proteger vidas — e não apenas o mercado. Do copo de leite ao pré-treino da academia, nada está imune à falsificação.

O Estado deve agir com mais eficiência na fiscalização, no policiamento e na concessão de patentes. Mas a vigilância é um dever coletivo: o consumidor, o comerciante e a indústria precisam desconfiar de preços incompatíveis com o mercado — e denunciar.

Saudade do tempo em que “o peixe morre pela boca” era só uma metáfora usada para alertar quem fala demais.

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