Entre repressão, inércia editorial e inovação digital, proposta legislativa reacende debate sobre traduções voluntárias, obras fora de catálogo e os limites da Lei de Direitos Autorais
A cultura digital transformou os hábitos de leitura, mas o Brasil ainda caminha lentamente na construção de políticas públicas que conciliem acesso à informação, proteção autoral e inovação tecnológica. De um lado, crescem as ações de repressão à pirataria de mangás, HQs e literatura estrangeira; de outro, leitores enfrentam barreiras de idioma e indisponibilidade comercial que dificultam o consumo legal de conteúdo.
Nesse contexto, a Ideia Legislativa nº 202939, registrada no portal e-Cidadania do Senado, propõe a legalização de traduções colaborativas não oficiais, sem fins lucrativos, de obras estrangeiras indisponíveis em português.
No mesmo sentido, é comum, de tempos em tempos, leitores defenderem a liberação provisória de obras “fora de catálogo” por mais de cinco anos, sugerindo uma saída legal e inclusiva para lacunas no mercado editorial, que não seja apelar para PDFs e outros scans ofertados na internet.
Repressão cresce, mas não resolve: o caso Japscan e as operações brasileiras
A repressão à pirataria digital se intensificou. Em julho de 2025, a Justiça francesa bloqueou o site Japscan, que distribuía milhares de mangás sem licença.
No Brasil, a Operação Slimeread – Traço Final e a Operação 404 já retiraram centenas de sites e perfis das redes, com apoio do MJSP e da CODA (Japão).
Ainda assim, especialistas alertam: punir sem oferecer alternativas sustentáveis apenas desloca o problema, sem resolvê-lo.
Traduções colaborativas: direito à cultura ou infração autoral?
A proposta legislativa sustenta que a indisponibilidade de traduções de obras estrangeiras — por recusa ou inércia editorial — compromete o direito constitucional à cultura (art. 215 da CF/88). Com base no art. 46, “d”, da Lei nº 9.610/1998, que já permite adaptações para pessoas com deficiência, os proponentes defendem que o mesmo princípio seja aplicado a traduções transitórias e sem fins lucrativos, desde que:
- A obra não esteja disponível em português;
- A tradução não tenha objetivo comercial;
- O conteúdo seja removido a pedido do titular.
O argumento central é que, se a lei já admite exceções em nome da inclusão, o acesso linguístico também merece proteção, especialmente quando não há oferta oficial.
Obras fora de catálogo: uma lacuna que afeta leitores, pesquisadores e bibliotecas
Milhares de obras — técnicas, literárias e artísticas — estão fora de circulação comercial há anos, sem nova edição, digitalização ou alternativa legal. Seria conveniente que conteúdo sem reedição por mais de cinco anos também pudesse ser disponibilizado de forma provisória e gratuita, ou mediante um sistema de recolhimento de royalties como se dá com as músicas, até que os titulares decidam reativar sua exploração.
Essa solução demandaria um regime legal específico, com:
- Garantia de remuneração posterior;
- Mecanismos de controle por entidades gestoras;
- Limitação de uso a fins não comerciais e educativos.
Riscos jurídicos e alternativas possíveis
Apesar da boa intenção, estas propostas enfrentarão severos obstáculos, que vão desde tratados internacionais como a Convenção de Berna até o direito moral dos autores, que é muito protegido pela legislação brasileira. Isso sem contar a longa vida dos direitos autorais e dos conexos, que se estendem até 70 anos após a morte do autor, assegurando também aos seus herdeiros proteção patrimonial independentemente de uso comercial.
Soluções viáveis incluem:
- Licenciamento coletivo estendido (ECL), com cobrança proporcional e gestão coletiva;
- Bibliotecas digitais públicas com repasse de valores a autores e herdeiros;
- Sistemas de licenças abertas autorizadas, como o modelo usado por plataformas de conteúdo independente.
Webtoons: a escola coreana que une acesso0, inovação e direito autoral
A indústria editorial tradicional pode aprender com os webtoons coreanos, quadrinhos digitais criados para leitura em smartphones, com rolagem vertical, interatividade e modelos nativos de monetização.
- Surgiram na Coreia do Sul com plataformas como Naver Webtoon;
- Permitem publicação por autores independentes e tradução oficializada por fãs, mediante curadoria;
- Monetizam via anúncios, assinaturas e licenciamento, criando um ecossistema sustentável de produção e distribuição digital.
Enquanto o mercado brasileiro trava a circulação de obras inativas e criminaliza traduções de fãs, o modelo coreano integra criadores, leitores e plataformas com legalidade e inovação, permitindo acesso à cultura com viabilização econômica e disseminação de seu softpower.
Editoras brasileiras no caminho digital — mas ainda com entraves
Algumas editoras têm avançado:
- Sextante: reforçou o catálogo digital com DRM e ações antifraude;
- Pearson: opera uma biblioteca virtual com limites de uso e remuneração garantida;
- Boitempo: mantém bibliodiversidade mesmo diante de pirataria;
- Intrínseca: aumentou expressivamente a participação de e-books no faturamento.
Mas o desafio ainda é estrutural: sem política pública digital de leitura e sem mecanismos legais de licenciamento coletivo, o acesso legal continua restrito — e a pirataria, infelizmente, lucrativa.
Conclusão
A Ideia Legislativa nº 202939 propõe um debate necessário sobre o direito ao acesso à cultura e às obras estrangeiras. Em vez de ser vista como afronta à Lei de Direitos Autorais, pode ser a semente para reformas legais legítimas, que promovam a leitura e a diversidade cultural sem violar direitos dos autores.
O Brasil precisa de:
- Reformas segmentadas na Lei nº 9.610/1998;
- Incentivos a plataformas legais de acesso;
- Reconhecimento do papel educativo e de inclusão das traduções colaborativas e do acesso a obras inativas.
Inovar, como fizeram os webtoons, é respeitar o autor sem excluir o leitor. Esse deve ser o eixo de uma nova política cultural na era digital — porque obras só transformam o mundo quando podem ser lidas.
Afinal, a Bíblia não se tornou o livro mais publicado e influente da história por estar trancada em prateleiras, mas por ter sido traduzida, difundida e acessível a todos.