Do Eternauta a Charlie Kirk, de Jesus a Voltaire. O preço da palavra: quando a liberdade custa a vida.

Mártir Progressista, Mártir Conservador ou apenas Mártir? Liberdade de expressão não é abstração, é o mínimo de dignidade que se pode preservar. Do escritor Héctor Germán Oesterheld, desaparecido na ditadura argentina, ao ativista conservador Charlie Kirk, morto em um campus universitário dos EUA; de Sócrates em Atenas a Jesus em Jerusalém; de Voltaire a Popper, de Mill a Arendt e Rosa Luxemburgo, a história insiste na mesma lição: Falar pode custar a vida, mas calar custa o futuro.


Mártir Progressista, Mártir Conservador ou Apenas Mártir

Ninguém deveria pagar com a vida pelo que diz. Ninguém deveria comemorar a morte de quem ousa falar. Ninguém deveria se rebaixar à covardia de celebrar o fim da dignidade humana.

Oesterheld e O Eternauta: a ficção que previu a noite

Em 1957, Héctor Germán Oesterheld publicou El Eternauta, obra-prima das HQs argentinas. Uma nevasca mortal cobre Buenos Aires; a sobrevivência depende de resistir ao isolamento e enfrentar invasores invisíveis. Não eram alienígenas: eram metáforas do autoritarismo em todos seus estágios e camadas.

Em 1977, Oesterheld foi sequestrado pela ditadura argentina. Torturado e “desaparecido”, assim como suas quatro filhas — duas grávidas. El Eternauta, transformada em série da Netflix em 2024, permaneceu como alerta para a submissão de povos pela força, da perda de sua dignidade pelo medo. Enquanto leitores seguiam acompanhando as páginas, o autor já não estava mais vivo, eram envidas da Espanha pelo ilustrador.

Ele não morreu pelo que escreveu, mas porque ousou escrever.

Charlie Kirk: a bala que silenciou o debate

Em 10 de setembro de 2025, Charlie Kirk, 31 anos, ativista conservador e cofundador da Turning Point USA, foi assassinado em Utah durante a turnê American Comeback Tour. Um tiro vindo de um prédio próximo atingiu seu pescoço diante de centenas de jovens.

Kirk era visto como a voz jovem do movimento pró-Trump. Amado e odiado, polemista por natureza. Sua morte expôs o limite da polarização: quando a retórica vira gatilho, o debate acaba em sangue. Mais grave que o tiro foi a reação de alguns comemorando o absurdo. Como se matar o opositor fosse vencer o argumento.


Voltaire: a defesa do direito de discordar

A célebre frase “Posso não concordar com o que dizes, mas defenderei até a morte o teu direito de dizê-lo” não saiu da pena de Voltaire, mas de Evelyn Beatrice Hall (1906), que buscou resumir o espírito do filósofo.

Voltaire foi perseguido, preso, exilado. Sua arma era a palavra contra o fanatismo e o absolutismo. Defender a fala do outro não era apenas bondade, mas autodefesa contra a tirania. Conheceu de perto o mal, e preferiu não se calar diante dele.


Popper e o paradoxo da tolerância

Em A Sociedade Aberta e seus Inimigos (1945), Karl Popper alertou:

“Se estendermos tolerância ilimitada até mesmo aos intolerantes, os tolerantes serão destruídos.”

A lição é direta: para que a liberdade sobreviva, é preciso negar espaço a quem deseja destruí-la. Não é contradição: é condição. Voltaire e Popper se encontram nesse ponto. O primeiro defende a liberdade de falar; o segundo adverte que a liberdade, inclusive de expressão, deve ser protegida a todo custo.


Mill, Arendt e Luxemburgo: ecos do mesmo dilema

  • John Stuart Mill (1859): silenciar uma opinião é roubar da humanidade a chance de confrontar a verdade.
  • Hannah Arendt: a política nasce onde as pessoas falam em conjunto; sem palavra, sobra apenas violência.
  • Rosa Luxemburgo:A liberdade é sempre, e exclusivamente, a liberdade para quem pensa diferente.”

Três gerações e três contextos, um diagnóstico comum: sem liberdade de expressão, sobra apenas o poder nu e toda sua opressão.


Mártires da palavra: Sócrates e Jesus

  • Sócrates foi condenado em 399 a.C. por corromper a juventude e desafiar os deuses. Sua “culpa” real: ensinar a perguntar. Recusou-se a renegar o pensamento; bebeu cicuta. Estudamos Sócrates até hoje, mas quase ninguém lembra os nomes dos seus algozes.
  • Jesus foi crucificado em 33 d.C. por confrontar o Império e o clero. Sua “culpa” real: anunciar um Reino que não se curvava ao Império. No fim, o Império se curvou ao Reino.

Ambos foram mortos por falar, por incomodar poderosos, por romper consensos. O sangue deles lembra que a palavra livre pode custar caro, mas que sem ela não há evolução.


O Brasil e a liberdade de expressão

A Constituição de 1988 protege a livre manifestação do pensamento (art. 5º, IX), além de cuidar dos direitos dos autores, inventores ou outros detentores de propriedade intelectual, mas, pelo bem ou pelo mal, carece de disciplina específica sobre o assunto, desde que deixou de vigorar a Lei de Imprensa.

De qualquer maneira, hoje, o desafio parece ser outro: não é só o Estado que cala, mas também o cidadão comum armado de cancelamentos, ameaças e aplausos à morte do adversário, isso quando não foi ele próprio, cidadão comum, quem puxa o gatilho.

Tempos de polarização que converte divergência em guerra santa, adversário em inimigo, afastando todos da autodeterminação e reduzindo a um rebanho que será, inexoravelmente, em algum momento, lançado ao abismo.


Riscos da polarização

A polarização cria bolhas que isolam pessoas e transformam o diferente em inimigo. É um fenômeno social e psicológico, agora turbinado por algoritmos e opiniões rasas embaladas em vídeos de trinta segundos, feitos, muitas vezes, por influenciadores que mal leem resenhas para disparar suas opiniões ao mundo.

Não é difícil imaginar um mundo onde todos pensam igual e o dissidente é sufocado. Está nas distopias de 1984, Fahrenheit 451, Admirável Mundo Novo. Ou, se preferir, em O Nome da Rosa, de Umberto Eco, onde o riso já era considerado perigoso demais. Nesses casos, até as resenhas deixam clara a mensagem e os alertas de seus autores.

A opinião divergente corrige rotas, evita excessos e equilibra a vida comum. Sem ela, sobra apenas o caos e, adivinha o que vem depois do caos? A ordem estabelecida pelo grupo mais forte, que domina e se beneficia do tumulto que, provavelmente, ajudou a criar.

 Talvez possamos evitar a fadiga e os riscos, apenas ouvindo com desejamos ser ouvidos, respeitando como desejamos ser respeitados, amando como desejamos ser amados. E lá se vão dois milênios…


O Preço da Palavra Sempre Vale a Pena

Sócrates bebeu cicuta. Jesus carregou a cruz. Oesterheld sumiu nas sombras da ditadura. Kirk tombou em um debate público lotado. Não são poucos os casos em que a palavra foi paga com martírio. Ainda assim, suas sementes sempre frutificaram, estimulando a manutenção da dignidade e o surgimento de novos heróis e, que pena que ainda precisemos deles.

Calar pode ser seguro, mas é também consentir com a barbárie. Quem renuncia à palavra hoje, acorda amanhã sem voz e sem mundo.

Se há um legado a proteger, não é o da unanimidade, é o do dissenso. Não custa lembrar de Nelson Rodrigues, que pensava na Vida Como Ela É e advertia que TODA UNANIMIDADE É BURRA.

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