Mercado Livre, Anatel e STF: o combate à pirataria digital e os deveres das plataformas

A disputa entre a maior plataforma de e-commerce da América Latina e a agência reguladora de telecomunicações pode ser profundamente impactada pela recente decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a responsabilidade das big techs.

1. Mercado Livre vs. Anatel: muito além de uma sanção administrativa

A intensificação do embate entre o Mercado Livre e a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), em 2025, marca um divisor de águas na relação entre plataformas digitais e o poder público regulador. A Anatel acusa o marketplace de reincidência na disponibilização de produtos de telecomunicações não homologados — como celulares e roteadores — e, com base nisso, iniciou procedimentos administrativos que envolvem multas milionárias e a possibilidade de bloqueio do domínio da plataforma no Brasil.

O Mercado Livre contesta tanto os fundamentos técnicos da acusação quanto a legitimidade do instrumento utilizado pela Anatel. Segundo a empresa, a agência extrapola sua competência regulatória, uma vez que já reconheceu limitações para regular “provedores de aplicação de internet”, categoria na qual se enquadram os marketplaces.

A polêmica também envolve um aspecto central de direito digital: a responsabilidade das plataformas pela conduta de seus usuários. O Mercado Livre sustenta que, nos termos do artigo 19 do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014), somente pode ser responsabilizado civilmente por atos de terceiros mediante decisão judicial específica. A Anatel, por sua vez, entende que o padrão de reincidência e tolerância à prática ilegal autoriza medidas preventivas mais incisivas.

2. Pirataria digital, propriedade intelectual e o dever de vigilância

A venda de produtos eletrônicos não certificados é mais do que um problema técnico: trata-se de um dos eixos da pirataria digital, prática que lesa a economia formal, prejudica o consumidor e viola direitos de propriedade intelectual. Diversos desses produtos se utilizam de marcas, designs e soluções tecnológicas registradas sem qualquer autorização dos titulares, ferindo patentes e marcas vigentes.

Além disso, a ausência de certificação compromete padrões mínimos de qualidade e segurança, expondo consumidores a riscos e gerando externalidades negativas sobre o setor produtivo. A leniência com esse comércio informal virtual amplifica a concorrência desleal, afeta a arrecadação tributária e estimula o desmonte da proteção à inovação no país.

Nesse cenário, a posição da Anatel ganha ressonância: plataformas com alcance nacional e expressivo faturamento não podem se furtar ao dever de cooperação ativa no combate a condutas ilícitas, ainda que praticadas por terceiros.

3. STF reconhece deveres das plataformas: um precedente de peso para o caso

Em paralelo ao embate regulatório, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou em junho de 2025 a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.638, envolvendo a aplicação do Marco Civil da Internet e a responsabilidade das chamadas big techs. A decisão do STF reconheceu que as plataformas digitais possuem deveres positivos de diligência e moderação, mesmo sem uma ordem judicial prévia — especialmente quando se trata de condutas reiteradas, ilegais e potencialmente danosas.

Embora o foco do julgamento tenha sido redes sociais e desinformação, os fundamentos estabelecidos têm reflexo direto sobre marketplaces, que operam com lógica semelhante: alto volume de conteúdo gerado por terceiros e ampla capacidade de alcance. Segundo o STF:

  • As plataformas não são neutras, mas sim atores relevantes no ecossistema informacional e comercial digital;
  • O dever de agir não pode ser absoluto, mas também não pode ser nulo;
  • A ausência de regulação específica não impede a atuação baseada em princípios constitucionais, como a proteção do consumidor, da ordem econômica e da segurança jurídica.

Esse entendimento fragiliza a tese do Mercado Livre de que não pode ser responsabilizado antes do trânsito em julgado de decisões administrativas. Também legitima, ainda que de forma indireta, a atuação mais incisiva de agências como a Anatel, desde que observados os princípios da razoabilidade, proporcionalidade e ampla defesa.

4. Conclusão: fim da neutralidade passiva e o nascimento de um novo paradigma regulatório

A conjunção entre o caso Mercado Livre vs. Anatel e a recente decisão do STF sobre os deveres das plataformas indica uma mudança de paradigma: o modelo de neutralidade passiva está com os dias contados.

Ainda que o Marco Civil da Internet imponha limites à responsabilização automática, o avanço da jurisprudência constitucional e a crescente complexidade das infrações digitais exigem um novo equilíbrio entre liberdade econômica e dever de vigilância.

A expectativa é que o Judiciário, ao julgar o mérito da disputa entre Anatel e Mercado Livre, leve em conta a posição do STF: as plataformas digitais têm dever de agir quando confrontadas com práticas ilícitas recorrentes, sob pena de corresponsabilidade — não apenas moral ou comercial, mas jurídica.

Esse novo horizonte demandará das empresas políticas mais robustas de compliance, cooperação com agências reguladoras e a internalização de critérios éticos e técnicos na gestão de risco. Afinal, num ambiente cada vez mais digitalizado, a defesa da propriedade intelectual e a integridade do mercado não podem prescindir da responsabilidade compartilhada.

Compartilhe