ENPI 2025–2027: PI como política de Estado

A Estratégia Nacional de Propriedade Intelectual começa a sair do papel, entre planos, indicadores e a agenda do IP Finance.


Políticas públicas para registros

A Estratégia Nacional de Propriedade Intelectual (ENPI) é, oficialmente, uma política pública. Extraoficialmente, representa uma mudança de mentalidade: deixar de tratar a Propriedade Intelectual como um problema, uma mera papelada de cartório, para enxergá-la como propriedade real e parte da solução de entraves estruturais do país.

Instituída pelo Decreto 10.886/2021, com vigência até 2030, a ENPI organiza 210 ações distribuídas em sete eixos estratégicos, operacionalizadas por planos de ação bienais. A proposta é fazer da PI um instrumento de desenvolvimento — e não apenas de defesa.

Na prática, isso significa retirar a PI da zona cinzenta da burocracia e colocá-la no centro dos debates sobre indústria, crédito, inovação e soberania tecnológica. O Grupo Interministerial de Propriedade Intelectual (GIPI), presidido pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), tornou-se o ponto de convergência entre ministérios, INPI e sociedade civil para decidir como o conhecimento protegido será tratado no país.

Enquanto isso, fora das salas de reunião, o dilema é mais concreto. Os prazos de concessão ainda são elevados, o Judiciário carece de maior especialização, faltam regras consolidadas de avaliação de ativos intangíveis e de desenvolvimento de um mercado estruturado. O resultado é que o sistema financeiro permanece reticente em aceitar a Propriedade Intelectual como garantia.

Ainda falta muito, mas, se o primeiro passo é metade da jornada…


ENPI: do decreto à governança

A ENPI nasceu em parceria com a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI/WIPO), com um desenho ambicioso: dez anos de vigência (2021–2030), sete eixos estratégicos e 210 ações. Tudo isso operacionalizado por planos de ação bienais, sob monitoramento do GIPI.

O primeiro plano cobriu 2021–2023. O segundo, 2023–2025. Em agosto de 2025, foi lançado o Plano de Ação 2025–2027, aprovado pela Resolução GIPI/MDIC nº 14, com 64 ações e 140 entregas, válido de 4 de agosto de 2025 a 31 de julho de 2027.

Por trás desses números, há um conflito silencioso: de um lado, a tradição das políticas públicas intermitentes; de outro, a tentativa de construção de uma política de Estado, com metas, indicadores e previsibilidade mínima.

O GIPI, presidido pela Secretaria de Competitividade e Política Regulatória (SCPR/MDIC) e secretariado pelo DEPIQ, funciona como o “roteirista” dessa história. É ali que se decide se a PI irá dialogar, de forma estrutural, com a indústria, o comércio exterior, o crédito e a política industrial.


Sete eixos voltados à competitividade

Os sete eixos da ENPI cobrem praticamente todo o ecossistema: competitividade e desenvolvimento; disseminação e capacitação; governança institucional; marcos legais; observância; inteligência e visão de futuro; inserção no sistema global.

Na prática, porém, alguns eixos puxam a fila. O de Competitividade e Desenvolvimento busca transformar Propriedade Intelectual em vantagem econômica, conectando proteção de ativos a crescimento empresarial, exportações e empregos. O de Disseminação e Capacitação tenta fazer com que inventores, startups, pesquisadores e empresários compreendam que PI não é apenas um tema jurídico, mas uma questão de sobrevivência empresarial.

O eixo de Modernização dos Marcos Legais toca no nervo exposto: sem segurança jurídica, não há investimento robusto em inovação. Já o de Inteligência e Visão de Futuro obriga o país a olhar para tendências tecnológicas e a usar dados de PI como “radar” estratégico. O de Inserção Global lembra que inovação sem internacionalização vira talento doméstico explorado por mercados alheios.

A LPI e a LDA já qualificam a Propriedade Intelectual como bem móvel, passível de uso, fruição, disposição, penhora, licenciamento e cessão. O desafio é tirar esse bem do papel e levá-lo ao balanço — e, principalmente, à análise de risco dos bancos.


Planos 2021–2023, 2023–2025 e o salto para 2025–2027

Os dois primeiros planos funcionaram como laboratório. O Plano 2021–2023 priorizou 49 ações, com foco em tecnologias verdes, ensino de Propriedade Intelectual na educação básica e cooperação técnica. O Plano 2023–2025 ampliou a agenda para 63 ações e 162 entregas, alinhadas à política de Neoindustrialização e à Nova Indústria Brasil.

No lançamento do Plano 2025–2027, o MDIC apresentou números que indicam a evolução da ENPI: entre 2021 e 2023, o Brasil passou da 10ª para a 6ª posição mundial em depósitos de marcas, segundo a OMPI. Manteve a 11ª posição em patentes e a 12ª em cultivares. O tempo médio de exame de patentes caiu para 4,3 anos em 2024.

Outro dado relevante: as indústrias intensivas em PI passaram a responder por 50,2% do valor agregado do PIB em 2020, contra 44,5% no período 2011–2013. É uma forma elegante de dizer que grande parte da riqueza nacional já vem dos intangíveis — mesmo que, muitas vezes, o próprio país ainda não tenha percebido. PI também é pop.


IP Finance 2025: a ENPI encontra o crédito

No fim de novembro de 2025, o CCBB do Rio de Janeiro sediou o seminário “IP Finance 2025 – Valoração e Financiamento de Ativos Intangíveis: Caminhos para um Novo Mercado de Inovação”. O evento foi organizado por MDIC, OMPI, INPI, LES Brasil e ABDE, com participação de BNDES, CVM, SEBRAE e representantes do sistema financeiro.

O foco foi direto: discutir como marcas, patentes, softwares e outros ativos intangíveis podem servir de garantia em operações de crédito. Foi o encontro entre quem cria valor, quem regula risco e quem concede o dinheiro. O seminário, seguido de workshop técnico, marcou o lançamento do estudo brasileiro da série “Unlocking IP-Backed Financing – Country Perspectives”, da OMPI, apresentado pelo INPI como uma das entregas previstas na ENPI 2021–2030.

Autoridades e especialistas convergiram no diagnóstico: a Propriedade Intelectual já é economicamente relevante, mas ainda não fala a língua do crédito. Faltam metodologias consolidadas de valoração, parâmetros contábeis adequados e apetite regulatório para aceitar intangíveis como garantia em larga escala.

Se não resolveram o problema, ao menos mapearam os caminhos.


Dilemas regulatórios: entre o tijolo e o código-fonte

A ENPI e o IP Finance 2025 escancaram um conflito estrutural: o sistema bancário foi moldado para imóveis, máquinas e estoques; a economia que mais cresce é feita de algoritmos, marcas e contratos de licenciamento.

A OMPI demonstra que o Brasil não está sozinho nesse descompasso. Em vários países, o peso econômico dos intangíveis não encontra reflexo proporcional no crédito. O estudo brasileiro apenas colocou essa ferida em letras maiores.

O paradoxo jurídico é claro: a lei permite penhora, cessão e licenciamento de Propriedade Intelectual; a jurisprudência já admite marcas como garantia de dívidas relevantes. Mas, na prática, o gerente do banco ainda pergunta pelo galpão, não pelo código-fonte.

Não há ainda um Marco das Garantias Intangíveis formalizado por normas conjuntas de Banco Central, CVM e INPI. O que existe é uma agenda em construção. O roteiro está sendo escrito; o filme ainda está em pré-produção.


Quem ganha e quem perde com a ENPI?

Para o inventor, o pesquisador e a startup sem ativos físicos, a ENPI representa, ao menos, a promessa de uma conversa mais honesta com o Estado. Há mais capacitação, mais editais e um discurso oficial que reconhece que inovação não é luxo, mas necessidade econômica.

Para pequenas e médias empresas intensivas em conhecimento, a mudança é mais palpável: marcas com maior previsibilidade, patentes em prazos menos imprevisíveis e a promessa de que a Propriedade Intelectual possa diferenciar operações de crédito. A distância entre o discurso e o extrato bancário, porém, ainda é grande.

Para as instituições, o INPI deixa de ser apenas cartório técnico para atuar como engrenagem de política industrial. O MDIC tenta costurar PI, neoindustrialização e desenvolvimento regional. BNDES, CVM e bancos são convidados a repensar seus modelos de risco. No fundo, trata-se de redistribuir poder entre quem tem tijolo e quem tem código.

O consumidor, quase sempre ausente do debate, é quem paga a conta quando a inovação não chega, quando empregos não são criados e quando a tecnologia chega atrasada e mais cara.


Próximos passos: mais política, menos fetiche tecnológico

O Plano 2025–2027 explicita agendas que antes estavam dispersas: bioeconomia, tecnologias sustentáveis, transferência de tecnologia universidade-empresa, ensino de Propriedade Intelectual em diferentes níveis e ações regionais, inclusive voltadas à Amazônia.

Do ponto de vista jurídico, não se trata de criar uma “superlei”, mas de ajustar engrenagens: aperfeiçoar normas infralegais, clarificar critérios de valoração, alinhar reguladores e consolidar jurisprudência.

Economicamente, o país precisará aprender a tratar intangíveis como ativos centrais — com métricas, risco precificado e produtos financeiros adequados — ou continuará exportando talento e importando tecnologia com ágio. O IP Finance 2025 é um passo relevante, mas ainda não é a virada do jogo.

Na dimensão humana, a ENPI só fará sentido quando o pesquisador perceber que vale a pena patentear, quando o pequeno empresário enxergar valor em registrar sua marca e quando o banco conseguir olhar para um portfólio de Propriedade Intelectual sem achar que está diante de uma obra de ficção. Até lá, seguimos nesse curioso país em que a economia já é intensiva em intangíveis, mas o crédito ainda é refém do tijolo.


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