Fim da PI? Serão os corsários do século XXI?

Jack Dorsey propõe abolir as leis de propriedade intelectual, recebe apoio de Elon Musk e levanta suspeitas: por que bilionários que lucram com PI querem seu fim?

Uma provocação que incendiou o debate

No dia 11 de abril de 2025, Jack Dorsey, ex-CEO e cofundador do Twitter, publicou no X: “delete all IP law” (“apaguem todas as leis de propriedade intelectual”). A afirmação, feita em meio a discussões globais sobre o uso de obras protegidas por inteligência artificial, recebeu apoio imediato de Elon Musk, que respondeu com um lacônico “I agree”.

A proposta reacendeu debates sobre o papel da PI no século XXI — e gerou desconfiança. Afinal, como explicar que bilionários cujas empresas são sustentadas por marcas registradas, códigos patenteados e contratos públicos proponham o fim da proteção legal que os enriquecem?

Crítica ou oportunismo?

Dorsey sustenta que o sistema atual de PI favorece intermediários e plataformas, em vez de remunerar diretamente os criadores. Ele defende alternativas como blockchain, para pagamentos descentralizados e diretos. A crítica ressoa entre artistas, designers e escritores que denunciam o uso massivo de suas obras por IAs como MidJourney e ChatGPT, sem autorização ou compensação.

Porém, a coerência da proposta levanta dúvidas. Dorsey é fundador de plataformas que lucram com PI. Musk, por sua vez, já disse que “patentes são para os fracos”, mas mantém centenas de registros na Tesla, SpaceX e X Corp., além de já ter processado concorrentes, como no caso da australiana Cap-XX em 2023.

Reações da comunidade criativa

A proposta foi duramente criticada. Ed Newton-Rex, CEO da Fairly Trained, chamou-a de “uma guerra declarada contra criadores”. O escritor Lincoln Michel lembrou que as empresas desses bilionários só existem graças à proteção da PI.

A crítica não é apenas ética — é estrutural: empresas como Tesla, Twitter/X e OpenAI dependem de PI para proteger seus modelos, dados, algoritmos, marcas e monetização.

PI como ativo econômico

Nos Estados Unidos, a USPTO estima que indústrias intensivas em PI movimentaram US$ 7,8 trilhões em 2019 — 41% do PIB — e empregaram 47,2 milhões de pessoas. No Brasil, o INPI e a OMPI calculam que os setores baseados em PI representam cerca de 30% do PIB nacional.

Esses números mostram que a propriedade intelectual não é apenas proteção jurídica: é um ativo econômico estratégico, com impacto direto sobre inovação, competitividade, distribuição de renda e soberania.

Visões divergentes: Thiel x Lanier

O debate sobre propriedade intelectual, tecnologia e inovação não começou com Dorsey e Musk. Ele já circula há mais de uma década — e pode ser visto com nitidez nas visões de dois pensadores influentes, porém antagônicos: Peter Thiel e Jaron Lanier.

Thiel (2012): monopólios como motores de inovação

Em 2012, Peter Thiel — cofundador do PayPal e investidor de empresas como Palantir e Facebook — deu uma série de palestras em Stanford, posteriormente publicadas no livro De Zero a Um. Nelas, defende que o progresso tecnológico real não nasce da concorrência desenfreada, mas da criação de algo único: “de 0 a 1”.

Nesse ponto, pode parecer que Thiel está apenas ecoando a teoria dos “Oceanos Azuis”mercados inexplorados onde não há competição direta. Mas a proposta é mais radical: ele sustenta que o objetivo de uma startup verdadeiramente inovadora deve ser criar monopólios. Para Thiel, a competição corrói lucros, desincentiva inovação e atrasa o progresso.

Essa defesa entusiasmada dos monopólios, no entanto, não surge no início de sua carreira, quando ainda era um outsider do Vale do Silício. Ela ganha força justamente após sua consolidação como um dos grandes nomes do capital de risco e da tecnologia.

Em sua visão, a propriedade intelectual é uma ferramenta estratégica — útil para consolidar posição e evitar imitadores — e não um direito fundamental ou um instrumento de equilíbrio social.

Lanier (2013): dados e desigualdade digital

No ano seguinte, em 2013, Jaron Lanier publicou Who Owns the Future?, obra em que apresenta o conceito dos “Servidores Sereias” — sistemas altamente centralizados (como Google, Facebook e Amazon) que capturam dados dos usuários em larga escala, sem remuneração, concentrando riqueza e, principalmente, influência.

Lanier propõe um modelo de economia digital humanista, no qual cada indivíduo seja reconhecido e compensado por sua contribuição de dados, ideias ou conteúdo. Para isso, sugere o uso de micro-royalties automatizados e de links bidirecionais que rastreiem o valor gerado ao longo da cadeia digital.

Seu alerta é claro: a ausência de mecanismos de redistribuição está criando uma elite tecnocrática sustentada por uma massa invisível — algo que, hoje, se intensifica com o avanço das inteligências artificiais generativas.

Dois mundos em choque — e um legado aplicável

As visões de Thiel e Lanier colidem em pontos centrais:

  • Thiel enxerga o poder tecnológico como motor de progresso — e, se necessário, concentração.
  • Lanier vê esse mesmo poder como ameaça à democracia econômica e ao valor do trabalho humano.

Enquanto um defende a liberdade de inovar sem amarras nem regulação, o outro propõe regras claras, rastreabilidade e compensações justas — especialmente num mundo onde dados se tornaram o novo petróleo.

Mais do que uma crítica datada, a proposta de Lanier pode — e deve — ser aplicada mutatis mutandis ao cenário atual da inteligência artificial. Seus princípios oferecem uma base concreta para enfrentar os desafios éticos, jurídicos e econômicos da era em que dados, linguagem e criatividade humana são transformados em produto — sem retorno garantido a quem os gerou.

O que pode garantir esse equilíbrio não é a abolição das leis, mas a existência de normas de propriedade intelectual — industriais e autorais — que sejam atualizadas, aplicadas com transparência e respeitadas por todos, inclusive por quem mais se beneficia delas.

A hipocrisia histórica: quem copia hoje, protege amanhã

A proposta de Dorsey contrasta fortemente com a trajetória de países que se tornaram potências ao proteger seus ativos criativos e tecnológicos — após longos períodos de apropriação não autorizada de tecnologias estrangeiras.

Estados Unidos

No século XIX, os EUA ignoram sistematicamente patentes britânicas para impulsionar sua industrialização, contrariando os interesses da Inglaterra agrária. Somente quando se tornaram potência exportadora passaram a exigir reciprocidade e rigidez nas normas de PI.

Japão

Na segunda metade do século XX, o Japão adotou práticas semelhantes, copiando tecnologias ocidentais antes de desenvolver marcas próprias como Sony, Panasonic e Toyota. Com o tempo, tornou-se um defensor rigoroso da proteção de PI — quando passou a exportar inovação.

China

A China seguiu o mesmo caminho. Acusada durante décadas de pirataria e cópias, passou a investir pesadamente em reformas legais e estratégicas a partir dos anos 2000, especialmente com sua entrada na OMC em 2001. Com o avanço tecnológico interno, adotou políticas de PI como eixo de soberania digital.

Hoje, lidera mundialmente em patentes de inteligência artificial, criou tribunais especializados, e exige que empresas de IA respeitem direitos autorais de dados usados em treinamento — demonstrando que proteção intelectual passou a ser do interesse nacional.

O padrão se repete: países tendem a valorizar a PI à medida que passam de importadores a produtores de tecnologia.

Reinvenção, não abolição

O debate impulsionado por Dorsey pode ser útil para provocar reformas. De fato, o sistema atual de propriedade intelectual é complexo, burocrático e muitas vezes inacessível a pequenos criadores.

Mas sua abolição beneficiaria justamente quem já tem poder de mercado e acesso privilegiado a dados — prejudicando a inovação plural, a diversidade cultural e a distribuição justa de valor.

Modelos híbridos como licenças abertas, contratos inteligentes e remuneração automática via blockchain já estão em debate na União Europeia e no AI Act — que exige transparência sobre os dados usados em modelos generativos.

Conclusão: a criatividade ainda precisa de proteção

A ideia de que a propriedade intelectual é um entrave à inovação não se sustenta diante da história, da economia ou da realidade digital contemporânea. A verdadeira ameaça à criatividade não está nas leis, mas nas plataformas que lucram com o trabalho alheio sem oferecer retribuição adequada — e que, em uma situação de monopólio, tendem a concentrar todo o conhecimento e, principalmente, seu uso e aplicação.

A defesa desse tipo de monopólio informacional, construído com base em dados massivos e poder computacional, representa um paradoxo: ele se alimenta das mesmas leis de propriedade industrial que sempre foram acusadas de criar os monopólios que hoje se deseja “abolir”.

Trata-se, na prática, de um retrocesso à Idade Média — ou antes — quando prevalecia o “segredo de negócio” como principal forma de proteção, condenando o mundo a ilhas de saber isolado, como a Murano do vidro, ou às corporações de ofício e guildas especializadas. Esse modelo concentrador e hermético atrasou por séculos a circulação do conhecimento e o progresso científico.

Esse desequilíbrio não é novo, nem desconhecido dos tempos modernos. O setor do entretenimento convive há décadas com essa lógica: da música ao audiovisual, passando até pelos esportes, o que se viu foi o surgimento de uma elite concentradora de receita, muitas vezes justificada por uma narrativa meritocrática, enquanto a maioria dos criadores segue mal remunerada ou invisível.

O risco é repetir esse modelo, agora em escala global, com base nos dados gerados por todos — e apropriados por poucos.

Mais do que abolir, é hora de reinventar a propriedade intelectual: torná-la mais ágil, justa e compatível com os desafios da era da inteligência artificialsem desmontar os pilares que ainda protegem quem cria, inova e compartilha conhecimento.

Vale lembrar: antes da PI, vigorava o sistema dos segredos industriais, que concentrava conhecimento, retardava o progresso científico e marginalizava inventores. Substituí-lo por um ambiente sem regras claras pode significar retroceder na geração e proteção à inovação — e ampliar ainda mais a desigualdade.

No século XXI, os verdadeiros corsários não usam bandeiras negras, mas continuam navegando ao lado de governos poderosos e firmando contratos bilionários. A diferença é que o ouro e a prata são os petabytes de dados alheios armazenados em seus servidores.

O desafio não é destruir a PI, mas torná-la um canal ainda mais eficaz de geração e distribuição de riqueza. É impedir que ela seja capturada pelos mesmos que hoje se dizem seus inimigos.

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