A paz que não é mágica
Quando Jesus enviou os discípulos em missão e ordenou:
“Em qualquer casa em que entrardes, dizei primeiro: Paz seja nesta casa” (Lc 10:5; Mt 10:12)
Jesus, rabino pragmático, não falava de um passe de mágica. Ele conhecia bem a densidade do termo Shalom: paz como condição construída, fruto de disciplina, força de vontade e prática cotidiana.
Traduzindo para os nossos dias — em que tantas palavras perderam o peso original e foram resignificadas ao gosto do momento — seria como dizer: que nesta casa se viva com ordem, limpeza, disciplina, coragem e sabedoria.
Shalom: completude bíblica
Na Bíblia, Shalom significa uma paz que vai além da ausência de guerra. É o estado em que nada falta, nada está quebrado e nada fora do lugar. Paz no coração, na comunidade e no cosmos.
Transportado para a vida organizacional, esse ideal soa familiar: um lar ou uma empresa em que processos fluem, pessoas se respeitam, ambientes se mantêm limpos, lideranças são justas e valores sustentam as metas. Nesses espaços, a ausência de brigas internas é consequência natural. Percebe-se, então, que a paz — o Shalom — não se confunde com comodismo ou inação, mas com uma ordem viva que exige prática constante.
O 5S: disciplina contra a pobreza
O Japão do pós-guerra estava arruinado. Perdera fábricas, juventude e energia. Precisava reconstruir-se. A derrota, embora esmagadora, foi tratada como um estado transitório: o povo japonês recusou-se a permanecer nela, apesar de todos os pesares. Nesse cenário quase apocalíptico nasceu o 5S, método simples e duro, que ensina a disciplina como único caminho para recuperar a verdadeira paz, aquela que não veio com o fim da guerra. Suas regras são simples:
- Seiri (utilização): separar o essencial do supérfluo.
- Seiton (ordenação): cada coisa em seu lugar.
- Seisō (limpeza): ambientes sem sujeira.
- Seiketsu (padronização): manter o padrão conquistado.
- Shitsuke (disciplina): transformar o esforço em cultura.
O 5S é o Shalom encarnado no chão de fábrica: paz que nasce da ordem, da disciplina e da coragem. É a paz aprendida na falta — como Pedro, que voltou ao mar depois de uma noite vazia e, a pedido de Jesus, encheu as redes a ponto de quase se rasgarem. Ao reconhecer a Verdade, deixou tudo na praia para segui-lo. Soube separar o essencial do supérfluo, afinal, nunca foi sobre peixes.
Boas ideias costumam ser a contrapartida da dor, mas apenas para quem se recusa a permanecer impotente diante dela.
Tradições paralelas
Algumas ideias só revelam sua importância quando reaparecem em tempos e lugares distintos. Esse é o caso aqui: caminhos diversos, épocas diferentes, mas a mesma intuição:
- Confucionismo: Li (ordem ritual) e Ren (humanidade) ecoam na disciplina do 5S e na benevolência do Shalom.
- Filosofia grega: Aristóteles buscava a justa medida (mesotés) o equilíbrio sem excessos ou falta. Os estóicos, a serenidade (ataraxia) e a ordem racional (eupraxia).
- Islamismo: Islam vem da raiz de Salam (paz). Submissão disciplinada que gera plenitude.
O que muda é a forma; o núcleo permanece: paz não nasce do acaso, mas de ordem, disciplina e humanidade.
Roma antiga, também pragmática, resumia esse esforço de outro modo: Si vis pacem, para bellum — “Se deseja paz, prepare-se para a guerra”. Quem se prepara para o combate, bem sabe que deve cuidar para que nada esteja faltando, fora do lugar ou quebrado. É a Paz aprendida no medo, mas revelada apenas a quem não se submete a ele.
Empresas em busca de Shalom
No mundo corporativo, um Shalom possível é este:
- Processos limpos e sem desperdício.
- Relações éticas e respeitosas.
- Cultura disciplinada e sustentável.
- Coragem para ser justo mesmo em cenários competitivos. Concorrência Leal.
Empresas que cultivam essa disciplina não apenas produzem e lucram mais: geram bem-estar humano e impacto social. Sua cultura atravessa os portões da fábrica e chega aos lares, formando profissionais mais comprometidos e íntegros. Assim se alimenta um círculo virtuoso entre trabalho e vida — e isso, convenhamos, é quase poesia.
Legião Urbana: a paz em poesia
Renato Russo, em “Há tempos”, resumiu o que a Bíblia chamou de Shalom e o Japão organizou em método:
Meu amor, disciplina é liberdade
Compaixão é fortaleza
Ter bondade é ter coragem
Lá em casa tem um poço,
Mas a água é muito limpa.
É a paz traduzida em versos: disciplina que liberta, compaixão que fortalece, bondade que ousa e a pureza que sustenta tudo.
A Paz seja convosco
Da próxima vez que ouvir ‘paz seja convosco’, você pode até imaginar a rede esticada na varanda — mas não antes do chão limpo, da mesa organizada e das relações justas. Shalom não é descanso passivo: é esforço ativo para manter a água do poço sempre limpa e a sede sempre distante.