De Nietzsche à Sem limites (Limitless) e deles à IA: como a Filosofia, o Cinema, a Neurociência e o Direito ajudam a entender o impacto da tecnologia e a vulnerabilidade digital do Brasil.
O fascínio pelo atalho
Em Sem Limites (Limitless, 2011), Eddie Morra encontra no NZT-48 a promessa de desbloquear todo o seu potencial intelectual. Mas há um detalhe crucial: a droga só funciona plenamente em quem já possui bagagem cultural e inteligência de base. O roteiro pode — e deve — ser lido como uma metáfora da Inteligência Artificial: nossa relação com a tecnologia, a dependência que criamos e, principalmente, onde realmente deveriam estar nossos medos.
Nietzsche, neurociência e a IA
O nome do protagonista já carrega uma provocação filosófica: Eddie Morra. Para que surja o Übermensch, o “além-do-homem”, o “Super Homem” nietzscheano, Eddie precisa morrer, ou ao menos, sua versão limitada. É a ciência que o conduz à transformação: a droga NZT-48 desbloqueia o potencial de quem já está preparado.
Na realidade, porém, as coisas são menos cinematográficas. Substâncias como metilfenidato ou modafinil seguem a lógica da curva em U invertido: ajudam quem tem déficit, fazem pouca diferença entre o bom e o ótimo e, para mentes já muito avançadas, podem até atrapalhar.
Mas se trocarmos a droga pela Inteligência Artificial, a metáfora se aperfeiçoa: Quanto maior o repertório, a cultura e o senso crítico do usuário, melhor o resultado.
Para o leigo, a IA pode parecer só um “Google turbinado”. Para o especialista, é um acelerador cognitivo que transforma conhecimento em estratégia, linguagem em persuasão e dados dispersos em argumentos sólidos.
E não faltam exemplos no mundo real para comprovar isso: Bill Gates lê cerca de 50 livros por ano, mesmo tendo acesso às mais avançadas IAs do planeta. Warren Buffett, Elon Musk e outros grandes tomadores de decisão também seguem essa prática. Isso não é hobby: é estratégia. Eles sabem que quanto maior sua bagagem intelectual, mais valor conseguem extrair da tecnologia. A IA não elimina a necessidade de preparo — ela apenas o recompensa exponencialmente.
Assim como o NZT-48 do filme, a IA não substitui a base intelectual. Sem preparo, não há salto verdadeiro. A ferramenta funciona melhor com os “inteligentes”.
O Eterno Retorno da histeria tecnológica
A cada revolução tecnológica, os medos são reciclados. O arado reduziu a mão de obra no campo. A imprensa “tirou o emprego” dos copistas. A Revolução Industrial abalou artesãos. O computador aposentou datilógrafos. E, mesmo assim, ninguém quis ou quer voltar atrás. Hoje, é mais fácil sair de casa descalço do que sem o celular.
Aliás, nunca se ouviu falar de crise de abstinência por falta de sapato… Mas tente ficar um dia sem Wi-Fi.
A sociedade se adapta, incorpora, transforma-se e torna-se dependente — porque precisa dessas ferramentas para viver melhor. O problema não é a dependência em si: dependemos de ar, água, alimento e abrigo para viver. A questão é, e sempre foi: Como garantir acesso contínuo e soberano a esses recursos?
E foi exatamente esse dilema que Eddie Morra enfrentou ao ver seu fornecedor morto: o problema não era mais a droga, mas a falta dela.
O Brasil e a nossa “droga” digital importada
A verdadeira preocupação não é se a IA vai dominar o mundo. É se o Brasil continuará importando suas muletas tecnológicas, vulnerável como um viciado sem estoque.
Hoje, somos superusuários digitais: usamos redes sociais, Pix, streaming e cloud para quase tudo. Mas fazemos isso dependendo de infraestrutura estrangeira.
Resumo da nossa realidade digital:
- Altíssimo consumo: Estamos entre os maiores usuários globais de internet, fintechs e redes sociais.
- Infraestrutura ausente: A maioria dos dados brasileiros é processada em data centers fora do país ou por multinacionais que apenas alugam terreno aqui.
Riscos estratégicos da dependência tecnológica
• Dados estratégicos sob jurisdição estrangeira
Informações sensíveis armazenadas em servidores fora do país podem estar sujeitas a legislações extraterritoriais, como o Patriot Act dos Estados Unidos, que autoriza o acesso governamental a dados de empresas americanas, independentemente da localização física dos servidores. A importância da proteção de dados aparentemente inofensivos não é nova: durante a Segunda Guerra Mundial, os comandantes alemães utilizaram mapas turísticos da Michelin para planejar a invasão da França — um exemplo de como dados civis podem ser reapropriados para fins militares.
• Serviços essenciais sujeitos a interrupções geopolíticas
A crescente interdependência tecnológica expõe países a riscos de descontinuidade ou encarecimento de serviços críticos. Um exemplo recente é o bloqueio imposto à Huawei a partir de 2019, quando sanções norte-americanas restringiram o fornecimento de semicondutores e sistemas operacionais à empresa chinesa, impactando cadeias globais de telecomunicações. O episódio evidenciou como decisões unilaterais podem comprometer o funcionamento de infraestruturas estratégicas.
• Falta de autonomia tecnológica, apesar de capital humano qualificado
Mesmo com centros de excelência e profissionais altamente capacitados, o Brasil ainda depende de tecnologias externas em setores críticos. O desenvolvimento do cargueiro militar KC-390 pela Embraer ilustra esse paradoxo: embora o projeto tenha sido liderado por engenheiros brasileiros, diversos componentes essenciais — como motores e sistemas de navegação — são importados e sujeitos a restrições de exportação impostas por outros países. Isso limita a capacidade de atuação autônoma e a inserção plena no mercado internacional de defesa.
Temos saída? Temos.
Há iniciativas promissoras:
- Scala AI City, no RS, e o megaprojeto RT-One, em MG.
- O plano Redata, com incentivos a data centers verdes.
- Um fundo em estudo pelo BNDES para infraestrutura digital.
- Investimentos privados, como os US$ 2,7 bilhões da Microsoft em São Paulo.
Mas tudo isso ainda é pouco diante da nossa dependência. Estamos prestes a repetir, no século XXI, a lógica colonial: exportamos dados, importamos tecnologia.
Somos usuários avançados, sim. Mas sem autonomia plena. Como Ayrton Senna sem carro competitivo: talento não basta para vencer. Precisamos das máquinas e de acesso irrestrito e continuado a ela.
Mas todos brasileiros são usuários avançados? O Abismo da Alfabetização Funcional
O analfabetismo funcional, que afeta cerca de 29% dos brasileiros entre 15 e 64 anos, representa uma barreira significativa para o uso efetivo e otimizado da IA no Brasil. Essa condição, caracterizada pela dificuldade em compreender textos complexos, interpretar informações e realizar tarefas que exigem raciocínio crítico, limita a capacidade das pessoas de interagir com IAs de forma autônoma e produtiva.
O Inaf 2024 revelou que, apesar de avanços pontuais, o Brasil segue estagnado em indicadores de alfabetismo funcional. Apenas 10% da população está no nível proficiente, enquanto a maioria opera em níveis rudimentares ou elementares — cenário agravado por desigualdades regionais, educacionais e raciais. Sim, apenas 10% da população tem condições de extrair o melhor da Inteligência Artificial.
Impactos diretos da baixa escolaridade na IA:
- Dificuldades na interação com sistemas de IA: Sem letramento digital e textual, usuários não conseguem formular prompts claros, interpretar respostas ou sequer acessar interfaces digitais.
- Exclusão social e digital: A IA, quando mal compreendida, se torna um novo vetor de exclusão. Ferramentas que poderiam empoderar, acabam por marginalizar.
- Mercado de trabalho em risco: Quase 30% dos trabalhadores brasileiros são analfabetos funcionais, o que os impede de aproveitar oportunidades geradas por automação e IA.
- Vulnerabilidade à manipulação e perda de criatividade: A falta de senso crítico aumenta o risco de manipulação algorítmica, fake news e uso superficial da tecnologia, ou seja, nesse caso, em vez de empoderar acaba por debilitar o usuário despreparado.
Sem educação, a IA será sempre uma ferramenta subaproveitada. Investir em alfabetização funcional, letramento digital e formação crítica é pré-requisito para qualquer política séria de inovação.
Filosofia, Direito e Geopolítica
A metáfora de Limitless nos obriga a olhar para três dimensões fundamentais:
- Filosofia: A IA é como a espada de Musashi ou a máquina de escrever de Veríssimo. Extensão das virtudes ou vícios de quem a usa.
- Direito: Regular sem sufocar. Como o Direito fez com o software, o direito autoral ou os medicamentos, o desafio é acompanhar a inovação sem asfixiá-la.
- Geopolítica: Nuvem é uma metáfora, uma ilusão. Tudo depende de servidores, energia, chips e redes físicas. Quem controla isso, controla o fluxo da informação — e, por tabela, o futuro.
Potencial Sem Atalhos
O filme Limitless nos lembra que nenhuma ferramenta cria inteligência — apenas amplia o que já existe. A inteligência artificial (IA) segue essa lógica: acelera, acessibiliza e transforma, mas não substitui discernimento, estratégia ou soberania. O verdadeiro desafio, portanto, não está na ferramenta, mas no humano — ou no país — que a comanda.
Nietzsche, nos incita a viver sem ilusões fáceis, a não procurar por desculpas, afinal “quem tem um porquê enfrenta qualquer como”. Talvez esse seja o maior ensinamento da era da IA: não se trata de demonizá-la ou mitificá-la, e sim de dominá-la com educação, preparo específico e garantia de uso perene, contínuo, soberano e estrategicamente orientado.
É preciso deixar de ser rebanho que, por definição, apenas segue seu pastor — sendo invariavelmente conduzido à tosquia ou ao matadouro. Um pensamento nietzscheano que foi solenemente ignorado por seus compatriotas, com consequências catastróficas para a Alemanha.
Talvez tenha chegado a hora de romper esse ciclo — deixando de ser conduzidos para, enfim, nos autoconduzir. Pastores do próprio caminho, e não rebanho digital de um sistema que não dominamos.
Porque, se é inevitável depender de algo, que seja de forma inteligente, autônoma e bem administrada.

