(um ciclo em três movimentos)
I — Por que escrevem os que sentem demais
No início,
poesia é para os apaixonados
e para os masoquistas.
Não para quem quer entender a vida,
mas para quem deseja senti-la —
celebrando a dor
de cada dia.
Convertendo dor em forma,
sede em palavra,
abismo em música,
e cada gemido
em poesia.
O apaixonado sofre e chora,
continua buscando o amor.
O masoquista sofre e sorri,
encontrando na dor
o amor.
Amor que apazigua a alma,
silencia a paixão —
e a poesia escorre
pelo chão.
Evolui.
O medíocre ama a vida como ela é:
sem perguntas,
sem vertigem,
sem risco —
apenas vida.
A poesia deseja essa paz do medíocre,
essa alegria do pão com manteiga,
a leveza de ser,
mesmo com dor.
A dor da rotina,
do dia a dia,
do heroísmo das contas pagas,
das poucas horas vagas.
A poesia dos pequenos gestos
passa despercebida —
porque o bom da vida
é a vida.
II — Quando o equilíbrio chega
Foi quando, um dia,
a dor se tornou amiga.
Sentou-se à mesa
e pediu um café.
O ritmo é o da respiração,
não o da urgência.
Quem sofria com as palavras,
agora sorri
e lê o poema inteiro.
Não há mais grito,
nem mais eternidade —
apenas a mudança
alterando toda a cidade.
O pão com manteiga,
o café com leite,
o ipê em flor,
o vento no rosto,
a alegria de outra manhã —
mais uma vida.
Uma vida nasce
e morre todo dia —
paixão, amor, tristeza e alegria.
Um ser que é em si
todos os dias,
sem deixar de ser
um só dia.
III — O que resta da poesia
Depois de tanto amor
e tanto abismo,
a mão que escreve treme,
a vista que lê falha —
mas persiste,
feliz em sua calma.
A dor cumpriu seu papel:
ensinou a escutar.
O amor cumpriu o seu papel:
ensinou a calar.
Agora,
cada palavra vem devagar,
como quem retorna
de uma longa viagem
e reconhece aos poucos
sua casa.
Casa mudada,
mas não pede mais reforma.
Nas paredes desgastadas,
histórias.
Acolhida
para quem foi além de si —
honrando a vida
na rotina boa e surda,
na luta boa e muda.
No fim,
tudo muda…
A água volta à terra,
o pão à mesa,
o verbo ao silêncio —
e a poesia,
à vida.
Bom mesmo
é a vida.
Texto e arte: Rubens Baptista
Publicado originalmente na seção Poíesis — Revista de arte, filosofia e cotidiano.

