RED SONYA × RED SONJA — A BATALHA ENTRE O DOMÍNIO PÚBLICO E O COPYRIGHT

Como uma letra, uma lei e o tempo transformaram uma guerreira literária de 1934 em um ícone protegido do século XXI


O Diabo está nos Detalhes

A substituição do Y por J transformou Red Sonya, personagem literária criada por Robert E. Howard em 1934, na icônica Red Sonja dos quadrinhos da Marvel Comics. Quase noventa anos depois, a editora Pipoca & Nanquim teve de refazer o caminho inverso — e pelo mesmo motivo: Direitos Autorais.

O lançamento de Red Sonya, Dark Agnes e outras histórias — e o anúncio de que o título retornaria ao nome original criado por Howard — reacenderam o debate jurídico entre obra original e obra derivada, envolvendo até mesmo a questão de uma marca nunca registrada no Brasil.


Domínio Público: O Tempo Liberta

Robert E. Howard morreu em 1936. Passados mais de 70 anos, contados do primeiro dia de janeiro subsequente ao seu falecimento, suas obras — incluindo The Shadow of the Vulture (1934), onde nasceu Red Sonya de Rogatino — ingressaram em domínio público, conforme prevê a Lei nº 9.610/98.

A partir desse momento, qualquer editora pode republicar, adaptar ou reinterpretar a guerreira criada por Howard, desde que preserve o crédito e a integridade da obra.

A Convenção de Berna reforça o princípio: a proteção autoral é automática e vale em todos os países signatários, mas cada país aplica seu próprio prazo. Nos Estados Unidos, o antigo regime de copyright exigia renovação no 28º ano. Como The Shadow of the Vulture não foi renovado, tornou-se de domínio público em 1962, uma década antes da Marvel se inspirar nela.


Red Sonja pode até ser filha, mas não é cópia

Quando Roy Thomas e Barry Windsor-Smith apresentaram Red Sonja em Conan the Barbarian #23–24 (1973), não estavam apenas adaptando Howard, estavam reinventando.

A personagem deixou o século XVI e foi transportada para a Era Hiboriana e ganhou o lendário “biquíni de corrente”, criado por Esteban Maroto, que tornou-se um símbolo visual e editorial indissociável da personagem.

Juridicamente, trata-se de obra derivada transformadora: nasce de uma base pública, mas gera nova proteção, pois expressa criação artística autônoma. O ciclo recomeça — a Red Sonya de Howard é livre; a Red Sonja da Marvel é protegida.


Paródia, Adaptação ou Homenagem? As Fronteiras da Criação

A fronteira é tênue. O art. 47 da Lei nº 9.610/98 dispõe que são livres as paráfrases e paródias que não forem verdadeiras reproduções da obra originária nem lhe impliquem descrédito.

A Red Sonja de Thomas pode ser lida como uma paródia transformadora no sentido ampliado do artigo: uma recriação que ironiza o imaginário pulp de Howard, acentuando o arquétipo feminino como reação simbólica ao universo masculino de Conan em que ela é inserida.

Mas, ao contrário das paródias musicais ou publicitárias comumente julgadas pelos tribunais, aqui o resultado transcende a sátira e se converte em novo universo ficcional, com direitos autorais próprios.


Quando a Justiça Define o Limite

  • “Garota de Ipanema” (STJ, 2018) – O tribunal reconheceu que uma paródia publicitária pode ser criativa e legal, desde que não deprecie a original.
  • Tiririca (STJ, 2019) – O uso eleitoral da canção “O Portão”, de Roberto e Erasmo Carlos, foi aceito como paródia política.
  • Campbell v. Acuff-Rose (EUA, 1994) – A Suprema Corte reconheceu o fair use de uma paródia musical do grupo 2 Live Crew.
  • Walt Disney v. Air Pirates (EUA, 1978) – O limite: a sátira foi considerada infratora por reproduzir literalmente os personagens de Mickey Mouse em quadrinhos adultos.

Esses precedentes formam um fio condutor: transformar é permitido; reproduzir, não.


Marcas têm fronteiras — Direitos Autorais, não

Diferentemente do Direito Autoral, que pela Convenção de Berna é reconhecido em quase todo o mundo (mesmo sem registro), o Direito Marcário é territorial e depende de registro.

A Lei nº 9.279/96 garante a propriedade da marca apenas após a concessão do registro, e somente dentro do território nacional, lógica que se repete na maioria dos países, moldada pela Convenção de Paris para a Proteção da Propriedade Industrial (1883).

Nos EUA e na Europa, Red Sonja é marca registrada para quadrinhos, vestuário e produtos licenciados. No Brasil, há apenas o registro de Red Sönja (com trema), como marca de cerveja.

Considerando que a exclusividade marcária é territorial, isso significa que, ainda que exista registro no exterior, a exploração editorial de Red Sonja SERIA plenamente possível no Brasil, se o caso não envolvesse Direito Autoral, que impede o uso.

Aliás, a Lei nº 9.610/98 protege até mesmo os títulos das obras, desde que originais e inconfundíveis:

“A proteção à obra intelectual abrange o seu título, se original e inconfundível com o de obra do mesmo gênero, divulgada anteriormente por outro autor” (art. 10, LDA).


Autoria, Fronteiras e o Tempo

O caso Red Sonya × Red Sonja mostra que o direito autoral é também história, metamorfose e renascimento. Uma personagem nasce em 1934, entra em domínio público em 2007, é reinventada em 1973 e retorna aos leitores em 2025 — cada etapa com novas camadas de proteção, estética e significado.

A decisão editorial da Pipoca & Nanquim respeitou o domínio público, interpretou corretamente os limites do direito autoral e reconheceu a autonomia das criações derivadas — ainda que tenha mencionado equivocadamente a questão marcária em seu pronunciamento.

Mais do que um caso de letras, é um caso de leis e de como a liberdade criativa e a segurança jurídica podem caminhar lado a lado, mesmo que não falem a mesma língua.


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