O AGENTE SECRETO DAS PATENTES BRASILEIRAS

Como um thriller sobre memória, repressão e perseguição, nos lembra da lenta virada da inovação acadêmica no Brasil


O FILME E O PECADO ORIGINAL DA CIÊNCIA BRASILEIRA

Em O Agente Secreto (2025, de Kleber Mendonça Filho), o professor Marcelo (Wagner Moura) volta a Recife em 1977 carregando uma pesquisa acadêmica que vale mais do que a própria vida. Os perseguidores — matadores contratados por um poderoso industrial aliado ao regime — querem não só silenciá-lo, mas apropriar-se de uma patente, aquele pedaço de papel com força de míssil jurídico: um título de propriedade que garante exploração exclusiva de uma tecnologia estratégica.

O filme se passa nos anos 1970, mas ilumina com precisão o velho pecado da ciência brasileira: toda vez que um pesquisador tentava transformar conhecimento público em riqueza privada (ou mesmo nacional), alguém apontava o dedo e gritava: “está querendo ficar rico com dinheiro público!”.

A verdade é simples, mas o Brasil sempre preferiu complicá-la. Riqueza gera riqueza, e nada mais brasileiro que desconfiar de quem tenta melhorar o país. Dom Pedro II, Visconde de Mauá, João Gurgel e tantos outros que o digam.


O ESTIGMA DO PESQUISADOR SUSPEITO

Por décadas, o cientista brasileiro foi tratado como personagem menor: podia pesquisar, publicar artigos e formar alunos, desde que não ganhasse um centavo com isso além de seus salário. A universidade deveria produzir papers, não invenções comercializáveis. Qualquer tentativa de licenciar tecnologia era vista como “desvio moral”.

Havia uma regra não escrita: “Se a ciência dá lucro, então não é ciência”. Resultado: perdemos laboratórios inteiros, startups, patentes, talentos e — o mais caro — tempo.

Enquanto isso, países que entenderam a lógica converteram suas universidades em máquinas de inovação. Hoje, felizmente, as universidades brasileiras estão entre as maiores depositantes de patentes de invenção do país (dados do INPI 2024/2025 mostram UFCG, UFPB, UFMG, Unicamp e outras liderando entre residentes).


O BRASIL QUE AINDA APRENDE A VALORIZAR PATENTES

O professor Marcelo é um exilado tecnológico. Estudou, inovou — e volta para um país onde seu conhecimento pode ser visto como ameaça por quem confunde soberania com controle absoluto.

A década de 1970 do filme era protecionista, com política de patentes restritiva e quase nenhuma cultura de transferência de tecnologia. Marcelo foge porque sua invenção tem valor estratégico. O Brasil, por muito tempo, fugiu de si mesmo porque não sabia (ou não queria) o que fazer com invenções valiosas.

Quem não lembra: o padre gaúcho Roberto Landell de Moura realizou as primeiras transmissões de voz sem fio em 1900 — pioneiro do rádio, morreu pobre e esquecido. José Braz Araripe e Fernando Lehly de Lemos inventaram em 1932 o câmbio automático hidráulico; venderam a patente à General Motors, que o transformou no famoso Hydra-Matic de 1940.

No fim, tudo girava — e ainda gira — em torno de dinheiro e da luta para obtê-lo, combatendo a crença suicida de que tecnologia nacional “não presta”.


O PRIMEIRO PASSO: A LEI DE PROPRIEDADE INDUSTRIAL DE 1996

Em 1996, a Lei nº 9.279 (LPI) mudou o jogo ao garantir ao inventor empregado (inclusive o servidor público) o direito de ser co-titular da patente e receber participação econômica. Foi como os bandeirantes e a Coroa: enquanto todo ouro ia para Portugal, quase não se achava mina; quando reduziram para o “quinto”, o ouro brotou.

A LPI estimulou milhares de pesquisadores “empregados” a registrar invenções sem medo de perder tudo para o Estado ou para a instituição. Abriu a porteira.

A partir dos anos 2000, com a Lei de Inovação (10.973/2004) e o Marco Legal da Ciência (2016), veio o resto: NITs obrigatórios, repartição clara de royalties, licenciamento facilitado, spin-offs. O discurso antigo — “você está usando dinheiro público para enriquecer” — foi perdendo força.

Hoje as universidades públicas são, de longe, as maiores depositantes residentes de patentes de invenção no Brasil, superando empresas privadas nacionais e até parte do setor industrial tradicional (INPI 2024/2025).

Mas ainda precisamos avançar: criar incentivos fortes para patentear também no exterior, porque proteger só aqui e deixar o resto do mundo livre é atirar no próprio pé.


PATENTES COMO MOEDA ESTRATÉGICA

A patente universitária deixou de ser enfeite e virou instrumento econômico, regulatório e geopolítico:

  • econômico → atrai investimento, gera royalties, cria startups;
  • jurídico → redefine contratos e titularidades;
  • geopolítico → protege tecnologias críticas;
  • social → impacta pacientes, agricultores, consumidores.

Uma universidade que patenteia movimenta cadeias produtivas inteiras. O que antes chamavam de “enriquecimento indevido” hoje é reconhecido como política de desenvolvimento nacional.

Curioso: gastamos rios de dinheiro com shows, Fórmula 1, Olimpíada — ninguém reclama, porque “traz retorno via turismo”. Artistas, pilotos e jogadores não trabalham de graça. Por que com a ciência tinha que ser diferente?


O DILEMA ATUAL: TRANSFORMAR PATENTES EM PRODUTOS

Temos mais depósitos, mais NITs, mais licenças — mas ainda falta fechar o ciclo. Sem funding de risco, segurança regulatória e ecossistema empresarial maduro, muitas patentes ficam no limbo: existem, mas não viram produto. Como dizia Lair Ribeiro, uma moeda de ouro no fundo do oceano não vale nada.

São agentes secretos demais — invisíveis até para quem poderia usá-los. No Brasil contemporâneo, a omissão é a nova perseguição, menos barulhenta e mais eficiente. Para matar uma planta no vaso, basta esquecer de regar.

Precisamos multiplicar casos como o da pele de tilápia: universidade (UFC) cede patente e o curativo chega ao SUS em escala (notícia UOL, 19/11/2025).


O PROTAGONISMO DE QUEM ERA IGNORADO

No fim, O Agente Secreto é também um depoimento sobre a ditadura, sobre um Brasil que tentava esquecer de si mesmo, e sobre a ciência brasileira que, enfim, começa a enxergar a universidade pública como infraestrutura invisível da soberania nacional e fonte legítima de riqueza.

O professor Marcelo corre para salvar sua invenção e sua vida. Que o Brasil corra para não continuar perdendo as suas.


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