Jimmy Cliff morre aos 81 anos. Sucessos Musicais, Contratos Pioneiros, Softpower Jamaicano e Muitos Rios Cruzados.

Um Ícone que Cruzou Muitos Rios

Em 24 de novembro de 2025, o reggae perdeu Jimmy Cliff. O artista faleceu aos 81 anos, após complicações decorrentes de uma convulsão seguida de pneumonia — informação confirmada por sua esposa, Latifa Chambers, em comunicado nas redes oficiais.

Nascido James Chambers (1944), na Jamaica, Jimmy Cliff foi um dos primeiros artistas caribenhos a conquistar projeção global, graças ao impacto de obras como Many Rivers to Cross (1969) e ao filme The Harder They Come (1972), cuja trilha e narrativa se tornaram pilares do reggae mundial.

Compositor, cantor e ator, Cliff consolidou um catálogo autoral robusto, que hoje constitui tanto um ativo econômico quanto um componente do soft power cultural jamaicano.

Um Catálogo Pioneiro: Jimmy Cliff como Ativo Estratégico de Propriedade Intelectual

Em 1962, Cliff assinou contrato com a Island Records, no Reino Unido, em um momento histórico em que muitos artistas caribenhos cediam integralmente seus catálogos a produtores ou gravadoras.

Segundo análise publicada na Revista Brasileira do Caribe (UFMA, 2014):

“Through this contractual arrangement, Cliff was able to secure ownership of the rights to his works.”

A manutenção da titularidade autoral permitiu que Cliff participasse mais diretamente da exploração internacional de suas canções — inclusive por meio de sincronizações audiovisuais (sync rights), como no filme The Color Purple (1985), que utilizou Many Rivers to Cross.

No âmbito dos direitos conexos (interpretação, performance e fonogramas), sua participação em The Harder They Come ampliou o valor comercial de sua imagem e voz, como reconhecido em estudos da WIPO ao discutir a internacionalização do reggae e o papel da obra no cinema global.

Com o falecimento, aplica-se o regime de sucessão autoral. A Jamaica adota vida + 95 anos de proteção (Copyright Act, 2015). O Brasil, vida + 70 anos (Lei 9.610/98). Isso significa que o catálogo de Jimmy Cliff permanecerá protegido até o século XXII, com efeitos diretos para herdeiros, editoras e titulares de fonogramas.

Pirataria no Brasil: o Caso das Fitas Cassete

Em maio de 2002, um camelô em Santa Catarina foi condenado por vender fitas cassete piratas e, uma boa parte delas, era de Jimmy Cliff. A notícia foi divulgada pelo ConJur e foi o exemplo de pirataria física que afetou profundamente o mercado fonográfico brasileiro.

Esse episódio é representativo de um fenômeno maior:

  • a pirataria de fitas e CDs era predominante no Brasil entre as décadas de 1980 e 2000;
  • artistas do Sul Global — como Cliff — sofriam perdas mais severas, por dependerem fortemente de royalties fonográficos para remuneração internacional;
  • o mercado informal desorganizava lançamentos oficiais, enfraquecia campanhas internacionais e criava um ambiente de violação sistemática de direitos autorais e conexos.

Com a era digital, o “circuito informal” não desapareceu, apenas mudou de forma. Hoje ele convive com o streaming e, paradoxalmente, muitos artistas passaram a usar a circulação informal, como forma indireta de difusão cultural, já que a distribuição fonográfica incrementa as receitas principais, obtidas com shows, sincronizações e merchandising.

Jamaica, Reforma do Copyright e Defesa do Soft Power

O Copyright (Amendment) Act, de 2015, na Jamaica, ampliou substancialmente o prazo de proteção para 95 anos, com aplicação retroativa aos fonogramas.

A reforma buscou:

  • evitar que gravações clássicas de reggae caíssem prematuramente em domínio público;
  • proteger ativos nacionais como Many Rivers to Cross e One Love;
  • reforçar a estratégia cultural e econômica do país.

A medida foi citada por órgãos como a WIPO e por iniciativas como o International Reggae Day como parte de um movimento de preservação do soft power jamaicano, entendendo o reggae como patrimônio cultural exportável, com alto valor simbólico e econômico.

Cliff como Símbolo de Política de PI no Sul Global

Jimmy Cliff tornou-se referência em políticas de propriedade intelectual por três razões principais:

  1. Reteve direitos autorais em um ambiente historicamente adverso, servindo como caso-modelo em estudos acadêmicos e relatórios sobre economia criativa.
  2. Mostrou a importância do controle contratual no início da carreira, evitando perda completa de obras — destino comum de muitos artistas da diáspora africana e caribenha.
  3. Evidenciou o desafio de enforcement em países do Sul Global, onde a circulação informal e a fraca fiscalização prejudicam a monetização sustentável de catálogos musicais.

Many rivers to cross…

Jimmy Cliff construiu, ao longo de décadas, um verdadeiro laboratório vivo de propriedade intelectual: contratos pioneiros, pirataria transnacional, disputas de direitos conexos, reformas legais, soft power e, agora, deixa ainda o desafio da monetização póstuma no universo digital.

No fim, sua vida confirma seu verso mais famoso: ainda há muitos rios a atravessar, inclusive para a própria propriedade intelectual.

OUTRAS LEITURAS RECOMENDADAS NO REVISUM

• DOM PEDRO II, NETFLIX E O OCTÓGONO
Como o Brasil perdeu o próprio softpower e por que a disputa global por narrativas passa pela cultura, pela tecnologia e pela propriedade intelectual. Leia mais

• PLÁGIO S.A.: O MERCADO DA ORIGINALIDADE
Como algoritmos, deepfakes, compliance e disputas jurídicas estão redefinindo a fronteira entre autoria, fraude e integridade intelectual. Leia mais

• GEORGE R. R. MARTIN VS IA GENERATIVA
A batalha que vai muito além da literatura: o conflito global entre autores, algoritmos e direitos autorais no século da inteligência artificial. Leia mais

Compartilhe