Trump ameaça tomar patentes de Harvard — decisão sem precedentes nos EUA expõe nova era de intervenção estatal sobre ativos estratégicos e coloca a propriedade intelectual no epicentro de uma disputa que atravessa fronteiras ideológicas e interesses econômicos.
Introdução – O campo de batalha invisível
A propriedade intelectual deixou de ser um tema restrito a advogados e inventores. Hoje, é arena de disputas geopolíticas, econômicas e tecnológicas que definem quem controla o conhecimento — e, por consequência, o futuro. Patentes, marcas e direitos autorais tornaram-se ativos tão estratégicos quanto petróleo ou bases militares e, no tabuleiro global, bilionários do Vale do Silício, governos e órgãos nacionais travam uma guerra que já foi mais silenciosa, mas que permanece decisiva.
1. O que vem acontecendo?
Dois acontecimentos recentes ajudam a entender o atual clima de tensão. O mais emblemático envolve diretamente a Casa Branca: Donald Trump declarou que poderia acionar o Bayh-Dole Act para assumir patentes de tecnologias desenvolvidas na Universidade de Harvard com recursos federais. A lei, criada em 1980, autoriza o governo a intervir em patentes financiadas por verbas públicas, mas aplicá-la contra uma instituição acadêmica dessa dimensão é raro e pode abrir precedentes de grande impacto.
Enquanto isso, Jack Dorsey e Elon Musk, vozes influentes do setor tecnológico, defenderam publicamente o fim das leis de propriedade intelectual, argumentando que o sistema atual favorece intermediários e não os criadores.
Embora diferentes em origem e propósito, esses movimentos se encontram na mesma interrogação central: quem, afinal, controlará o conhecimento estratégico?
Contexto jurídico – O que é o Bayh-Dole Act
Criado nos EUA em 1980, o Bayh-Dole Act permitiu que universidades, pequenas empresas e entidades sem fins lucrativos passassem a deter direitos de patentes originadas de pesquisas financiadas pelo governo federal. A lei também prevê cláusulas conhecidas como march-in rights, que permitem a intervenção estatal em nome do interesse público — dispositivo raramente usado e praticamente nunca contra grandes universidades. A ameaça de Trump rompe com mais de quatro décadas de tradição nessa matéria.
2. Tática – Movimentos estratégicos
Sob uma lente estratégica, os recentes posicionamentos funcionam como movimentos num tabuleiro calculado. Musk e Dorsey agem como provocadores que lançam ideias radicais para reconfigurar o debate e criar espaço para novas formas de apropriação tecnológica. O governo Trump, por sua vez, sinaliza centralização, tratando ativos intelectuais como instrumentos de poder político e econômico. É a lawfare em ação — uma guerra jurídica travada nas interpretações e brechas da lei.
3. Estratégia – Desenhos no horizonte
De longe, cada ator parece perseguir um destino próprio, embora as rotas possam se cruzar. Empresários defendem a flexibilização das regras em nome da inovação e da redução de custos, mas o histórico sugere que tais movimentos também podem servir à consolidação de monopólios. Governos, atentos ao xadrez global, buscam concentrar patentes estratégicas, o que, em cenários adversos, pode até ser usado para aliviar dívidas via exploração tecnológica. É um quadro que remete à Teoria da Transição de Poder: quando a maré tecnológica ou política muda, é preciso ajustar as velas — e, por vezes, trocar o próprio timoneiro.
4. História – Ecos que retornam
O presente reverbera padrões que a história conhece bem. No passado, Estados Unidos, Japão e Coreia do Sul se industrializaram ignorando patentes estrangeiras; só depois, quando suas indústrias amadureceram, tornaram-se guardiões implacáveis desses mesmos direitos. Durante a Guerra Fria, patentes estratégicas — nucleares, aeroespaciais — mudaram de mãos sob o manto do sigilo estatal. Na Revolução Industrial, barreiras econômicas mantinham inventores afastados do jogo, reservando a inovação a poucos.
Hoje, o aço e o carvão cederam lugar à inteligência artificial e ao blockchain como símbolos do poder produtivo. A lógica, no entanto, persiste: em tempos de crise, a tendência é que o capital — e a propriedade intelectual que o sustenta — se concentre. As ferramentas mudam, mas o instinto de guardá-las permanece o mesmo.
5. Filosofia, Ética e Mítica – Entre o ponto de equilíbrio e o fogo de Prometeu
Na tentativa de responder a quem pertence uma ideia, é possível recorrer tanto à filosofia quanto aos mitos. Aristóteles talvez buscasse um equilíbrio entre reconhecer o mérito do criador e permitir a livre circulação do conhecimento. Nietzsche poderia ver na abolição das patentes um campo fértil para os fortes, ainda que hostil aos fracos. Hannah Arendt, por sua vez, chamaria atenção para a “banalidade” de decisões regulatórias quase invisíveis, que corroem a liberdade criativa sem ares de tirania.
Essas tensões dialogam com narrativas antigas. Como Prometeu, há quem desafie os “deuses” — hoje corporações ou Estados — para levar o fogo do conhecimento aos mortais. Mas a concentração extrema desse saber lembra a Torre de Babel, onde o desejo de controle absoluto levou à fragmentação. Guénon veria aí um sinal de afastamento entre a criação e o bem comum. Entre filosofia e mito, permanece a pergunta: o fogo que guardamos é para iluminar ou para queimar?
6. Prospectiva – Sementes lançadas
Talvez o amanhã já esteja germinando nos gestos de hoje. No horizonte mais próximo, multiplicam-se as vozes que pedem reformas profundas — ou mesmo o desmonte das leis de PI. Criadores independentes buscam refúgios no blockchain e em licenças abertas, caminhos que libertam mas também expõem à força das Big Techs, cujos interesses nem sempre convergem com o interesse coletivo.
Mais adiante, é plausível imaginar polos tecnológicos emergindo em países de regras mais flexíveis, enquanto disputas envolvendo inteligência artificial e biotecnologia se intensificam. No entanto, o alcance desses polos pode ser limitado pelo fato de que a espinha dorsal digital — os grandes data centers — está concentrada nas potências globais. A internet, por mais livre que pareça, tem donos.
E, num horizonte distante, o pêndulo pode oscilar entre uma carta internacional capaz de harmonizar direitos e acessos ou um feudalismo tecnológico em que poucos concentram as chaves de quase todas as inovações. O que se planta agora, cedo ou tarde, será colhido. A questão é: quem será o dono do campo?
7. Conclusão – A encruzilhada
O destino da propriedade intelectual dificilmente será moldado apenas por juristas — e talvez isso seja inevitável, já que juristas tendem a reagir mais do que antecipar. Estrategistas, políticos, engenheiros, inventores e criadores de diversas áreas também puxarão as rédeas.
O desafio é lembrar que a ausência de regulação nos entrega à lei dos mais fortes, mas que o excesso de proteção pode erguer muralhas tão intransponíveis quanto um deserto é vazio. Entre esses extremos, talvez haja espaço para reformas que combinem mérito, transparência e acesso — para que o fogo de Prometeu continue iluminando, sem transformar-se em chama que consome.