Gracyovos: nasceu rápido e morreu ainda mais rápido

O Canva mostrou como criar uma marca pode ser fácil, mas protegê-la é bem mais difícil. “O que é escrito sem esforço é lido sem prazer”, dizia Samuel Johnson. O aforismo serve para quase tudo na vida — inclusive para as marcas.


A marca que existiu por dois dias

Por dois dias, o Brasil acreditou que a marca Gracyovos existia. Ovos fitness, embalagem elegante, discurso saudável, promessa de performance. Ligada à imagem de Gracyanne Barbosa, parecia mais uma daquelas histórias de marketing bem-sucedido que nascem no Instagram e viram caso de negócios.

Era publicidade.

A ideia lembrou Orson Welles e a “Guerra dos Mundos”, agora adaptada à lógica da internet para promover uma plataforma que cria marcas, logotipos e identidades visuais enquanto o café ainda está quente.

Fake news. A marca existia. O produto, não.


O experimento perfeito demais

O experimento funcionou justamente por ser perfeito demais, moldado aos algoritmos da internet. Nome, visual, narrativa. Nada de CNPJ, contrato social, fábrica ou registro no INPI.

Perguntaram apenas onde comprava.

E isso diz muito sobre o nosso tempo — e sobre a enormidade de golpes cibernéticos aplicados diariamente no mundo.

Nunca a humanidade esteve tão abastecida e, paradoxalmente, nunca viveu por tanto tempo em um estado tão profundo de escassez. E há muita gente se aproveitando disso.


O ponto cego da autoria

A Gracyovos funcionou como metáfora involuntária do empreendedor moderno: tudo pronto por fora, tudo frágil por dentro.

A plataforma mostrou ao Brasil um poder real: qualquer pessoa pode criar uma identidade visual completa sem saber desenhar, sem contratar designer, sem entender de tipografia. Como toda ferramenta, naturalmente produz melhores resultados nas mãos de quem tem cultura visual e talento para operá-la.

O que não mostrou é que os elementos utilizados nessas criações não pertencem a quem cria. São licenciados, não exclusivos, compartilhados por milhares de usuários ao mesmo tempo.

E marca, para merecer registro, precisa exatamente do oposto disso: distintividade.


O contrato que ninguém lê — e que decide tudo

Há um detalhe que quase nunca aparece nos tutoriais, nos vídeos rápidos ou nos anúncios sedutores das plataformas: o contrato.

Quase ninguém lê os termos de uso das ferramentas digitais. E quase todos pressupõem que, se criaram algo ali dentro, aquilo automaticamente lhes pertence por inteiro. Não pertence.

O que existe, na maioria dos casos, é uma licença de uso, limitada, não exclusiva, revogável e condicionada. O desenho pode estar na sua tela. A propriedade, não necessariamente.

É nesse ponto que muitos criadores tropeçam. Assinam contratos digitais sem ler. Aceitam termos sem compreender. Constroem marcas sobre uma base jurídica que nunca foi testada. Quando o conflito aparece, descobrem tarde demais que não basta ter criado — é preciso ter direito.

O contrato de adesão continua sendo um contrato: deve ser lido e cumprido.


Onde começa o problema jurídico

O problema começa quanto a arte precisa se transformar em propriedade.

Se a Gracyovos fosse uma empresa real, tentaria registrar sua marca no INPI — afinal, marca sem registro não se justifica — e nesse momento entraria, desde o primeiro passo, numa zona de risco silenciosa.

Elementos genéricos enfraquecem a distintividade. Ícones compartilhados reduzem a força do conjunto. E os contratos de licença da plataforma, em muitos casos, impedem que alguém se diga titular absoluto do que está usando.

Muitas empresas, consciente ou inconscientemente, já venceram essa verdadeira corrida de obstáculos. Em parte, porque o INPI pesquisa anterioridades apenas em seu próprio banco de dados, e não em bancos gráficos privados. Mas o risco nunca desaparece — ele permanece suspenso, como a Espada de Dâmocles.

A pergunta não é se o fio vai se partir. A pergunta é quando.

Será quando a marca for licenciada para dezenas ou centenas de franqueados? Segundo a Lei de Murphy, esse seria um excelente momento.


O choque entre estética e Direito

Do ponto de vista jurídico, o dilema é claro.

O Direito Autoral protege a criação original, mas não transfere automaticamente a propriedade de elementos licenciados. A Lei de Propriedade Industrial protege a marca, mas exige que ela seja distintiva e apropriável.

Templates públicos e bancos gráficos globais operam na lógica oposta: circulação, repetição, padronização.

No meio disso tudo está o empreendedor, que acredita ter criado algo “seu” quando, juridicamente, criou apenas uma combinação provisória de coisas alheias.

Agora imagine a construção jurídica perfeita para destruir um registro de marca: registro que viola direito autoral de terceiros, desrespeita os limites do contrato da plataforma, utiliza elementos de uso comum e que, pela soma desses fatores, revele má-fé no pedido e no uso.

Resultado: ação de nulidade imprescritível, que pode ser proposta pelo INPI, pela própria plataforma de criação do logotipo ou por um concorrente.

Essa história toda foi ótima para a estética. Péssima para a exclusividade. E pior ainda para a segurança jurídica.


O recado que ficou

O design não se transformou em commodity. A função da propriedade intelectual é justamente impedir que isso aconteça.

Talvez esse tenha sido o maior mérito involuntário da campanha: provar que o Brasil aprendeu a criar marcas em velocidade de Wi-Fi — mas ainda as protege no ritmo da internet discada.


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Esta análise da Gracyovos, do Canva e dos riscos entre design, contrato e marca registrada conversa com outros artigos já publicados no portal:

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