Santa Treta, Batman! O custo (jurídico) de homenagear heróis

“Wonder Woman” nos Tribunais Europeus. Casos envolvendo disputas sobre a marca na França e no Reino Unido expõem os desafios legais entre inspiração, paródia e infração no universo da propriedade intelectual.


Como diria Harvey Dent: você joga a moeda… mas o tribunal parece jogar uma também.

A DC Comics, detentora dos direitos sobre icônicos personagens como Batman, Superman e Mulher-Maravilha, possui um histórico combativo na defesa de sua propriedade intelectual. Em várias ocasiões, obteve vitórias expressivas, como no caso das réplicas do Batmóvel ou em disputas envolvendo o uso de logos similares ao do Cavaleiro das Trevas.

Entretanto, nem todos os confrontos resultam em sucesso automático, como revelam dois episódios recentes: um envolvendo o aplicativo Wondermum, na França, e outro com a marca homônima registrada pela Unilever no Reino Unido. Esses casos mostram que, apesar do peso global das marcas da DC, o direito de marca encontra seus limites na necessidade de prova contextual, reputação local e risco efetivo de confusão.


Wondermum, o app normando que incomodou a DC

No início de 2025, a empresária Lise Sobéron lançou na região da Normandia o aplicativo Wondermum, uma plataforma voltada ao apoio parental: organização de tarefas, dicas para famílias e troca de serviços entre usuários. O nome, segundo Sobéron, foi inspirado em uma homenagem pessoal após a morte do pai de seus filhos. A marca foi registrada na França, e os elementos visuais da app — uma mulher comum, com roupas casuais e postura ativa — não continham referências diretas à personagem da DC.

Mesmo assim, a DC Comics notificou oficialmente a criadora, exigindo a retirada do nome e da identidade visual, alegando possível infração de marca e associação indevida com “Wonder Woman”. O caso ganhou ampla repercussão na imprensa francesa e britânica. Sobéron relatou que trabalha sete dias por semana e que quase toda a receita da startup está sendo usada para custear a defesa jurídica, estimada em até €30.000.

Segundo a cobertura do The Guardian e do Le Parisien, o avatar do app, a grafia diferenciada (“Wondermum” em uma só palavra) e a ausência de elementos como tiara, escudo ou estrelas vermelhas enfraquecem os argumentos da DC. Sobéron também abriu uma campanha de crowdfunding para cobrir os custos legais, recebendo apoio de usuários e da comunidade local.

A disputa ainda está em andamento. Mas o caso levanta discussões relevantes sobre abuso de direito, desequilíbrio de forças entre titulares de marca e pequenos empreendedores e sobre como os tribunais europeus interpretarão a possibilidade de coexistência pacífica entre nomes semelhantes em contextos distintos.


O caso britânico: Wonder Woman vs. Wonder Mum (Unilever)

Em 2019, a Unilever entrou com pedido de registro da marca “Wonder Mum” no Reino Unido, também para produtos da classe 3 (cosméticos e higiene pessoal). A DC Comics apresentou oposição formal, baseando-se nos seguintes fundamentos:

  • Risco de confusão com “Wonder Woman”;
  • Aproveitamento indevido da reputação da marca famosa;
  • Concorrência desleal / passing off.

O UKIPO (Intellectual Property Office) rejeitou todos os argumentos. A decisão administrativa afirmou que não havia similaridade conceitual suficiente para confundir o consumidor, e que a DC não apresentou provas robustas sobre a reputação local da marca no mercado de cosméticos britânico. O High Court confirmou esse entendimento, reforçando que marcas famosas também precisam cumprir exigências probatórias específicas. A distintividade ou a ausência dela – confusão – deve ser comprovada materialmente, sob pena de um julgamento subjetivo que sempre terá baixa previsibilidade.


Disputas anteriores: morcegos, carros e capas

A DC não é novata em batalhas judiciais para proteger seu portfólio de heróis. Em 2012, se opôs ao clube espanhol Valencia CF pelo uso do morcego no escudo. Embora o símbolo seja anterior ao Batman, a DC questionou o novo design proposto pelo clube junto ao EUIPO (o órgão europeu de marcas). O clube desistiu do registro, mas o caso não teve uma decisão formal condenatória contra o Valencia.

Outro caso emblemático ocorreu nos Estados Unidos, quando a DC processou Mark Towle, que fabricava réplicas do Batmóvel. Nesse caso houve o entendimento que o veículo era um personagem com proteção autoral, não apenas um elemento cênico. A decisão reforçou que elementos visuais altamente distintivos podem receber proteção como obra original.

Também merece destaque o caso DC vs. Bruns Publications (1940), em que a DC alegou que a tira “Wonderman” imitava o Superman. O tribunal definiu um princípio até hoje vigente: ideias não são protegidas, apenas sua expressão concreta.


O que Criativos, Juristas e Gestores de Marca têm a ver com isso?

Os casos recentes envolvendo o nome Wondermum — seja como aplicativo comunitário na França ou como marca de cosméticos no Reino Unido — trazem à tona uma zona cinzenta no direito da propriedade intelectual: quando a homenagem, a inspiração ou a coincidência passam a configurar infração?

A resposta não é binária. Dependerá sempre de elementos como:

  • o contexto de uso;
  • o público-alvo envolvido;
  • a intensidade da similaridade entre os sinais;
  • e, sobretudo, a existência de provas robustas de reputação e potencial de confusão.

Para pequenos criadores e empreendedores, os casos oferecem advertências práticas:

  • Busque diferenciação visual e conceitual real ao se inspirar em temas conhecidos;
  • Consulte especialistas em PI antes de registrar nomes sugestivos;
  • Tenha um plano jurídico básico de contingência: se a marca fizer sucesso, as notificações provavelmente virão.

Para grandes marcas, a lição é que a notoriedade isolada não garante vitória no tribunal. A exigência de provas locais e atualizadas é cada vez mais rigorosa em jurisdições diversas. Além disso, processos contra pequenos podem gerar ruído reputacional negativo, especialmente quando envolvem figuras simpáticas ao público.

O paradoxo final está nas próprias narrativas da cultura pop:

Mesmo no universo da DC, povoado por heróis aristocráticos, é comum vê-los defenderem o pequeno contra o poderoso, o fraco contra o sistema, o justo contra o arbitrário.

Quando a defesa de uma marca se torna inflexível e desproporcional, corre-se o risco de inverter os papéis e transformar heróis corporativos em antagonistas institucionais.

É o paradoxo de Robin Hood: quando quem se apresenta como defensor da justiça passa a agir como o xerife de Nottingham, perseguindo os pequenos em nome de uma legalidade dissociada de proporcionalidade, o fora-da-lei parece ser o justo da história.

Duvida disso? Pense em como os EUA perdeu a guerra do Vietnam apesar de ter vencido todas as batalhas…


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