Tentaram Registrar a Marca do Comando Vermelho

Apropriação de Marcas do Crime e pelo Crime

Tentaram registrar “Comando Vermelho” como marca. Entre facções, torcidas e cultura pop, o artigo analisa como a notoriedade invertida transforma o crime em símbolo e as marcas em reféns do próprio imaginário.


Marcas são Símbolos. Há quem se esqueça.

As marcas são signos de consumo, mas transmitem e informam muito mais do que isso. Funcionam como símbolo de status, posicionamento político e sinal de pertencimento e, justamente por isso, muitas vezes ocupam territórios sociais imprevistos — como os das facções criminosas, torcidas organizadas e movimentos populares. Nesses espaços, imagens e personagens da cultura pop são reconfigurados como expressões de pertencimento, resistência ou intimidação.

O Comando Vermelho, franquia do crime que dispensa apresentações, nasceu em 1979 e, não tardou, a conquistar notoriedade. Justamente por conta disso, entre 1992 e 2001, tentaram registrar seu nome como marca — em classes que iam de vestuário a programas de televisão —, sempre sem sucesso. O Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), que inicialmente indeferia os pedidos por motivos diversos, passou a fazê-lo com base no artigo 124, inciso III, da Lei 9.279/1996 (LPI), que veda registros “contrários à moral e aos bons costumes”.

Adidas e Nike também foram cooptadas por facções, convertendo-se em sinais de identidade criminosa. A caveira do Justiceiro, personagem da Marvel Comics, foi adotada por policiais e bandidos, tornando-se emblema da violência. O Mancha Negra e os Irmãos Metralha, da Disney, e até mesmo o Hulk, foram apropriados por torcidas organizadas — transformando ícones do entretenimento em símbolos de poder e confronto.

Essas tensões revelam o ponto cego da propriedade intelectual: o direito pode impedir o registro ilícito, mas não controla o destino simbólico do signo. É daí que emerge a chamada Notoriedade Invertida — quando o capital simbólico negativo é explorado como ativo cultural.


Ordem Pública

O direito marcário funda-se na dupla função econômica e social da distinção. O artigo 124, inciso III, da LPI representa o ponto de intersecção entre mercado e moralidade, ao vedar registros que atentem contra valores coletivos. O Manual de Marcas do INPI reforça, em seu tópico 5.8, que:

“Considera-se como condição de liceidade do sinal a sua não interdição legal por motivo de ordem pública ou por razão da moral e dos bons costumes. A proteção ao requisito da liceidade do sinal está amparada no art. 124 da LPI, em seus incisos I, III, XI e XIV.”

Sob perspectiva sociológica, trata-se de um mecanismo de fronteira simbólica: o Estado define o que pode ou não circular como representação legítima. O indeferimento de marcas associadas a facções, grupos neonazistas ou movimentos armados — como “Comando Vermelho” ou “PCC” — constitui uma vigília semiótica, preservando a ordem pública no plano dos signos.

Mas, como observa Erving Goffman, os estigmas escapam às instituições. Mesmo proscritos juridicamente, podem adquirir prestígio subterrâneo, transformando-se em símbolos de resistência dentro de subculturas específicas. É aí que nasce a Notoriedade Invertida.


Notoriedade Invertida: o capital simbólico negativo

A Notoriedade Invertida descreve a apropriação deliberada de signos negativos em busca de visibilidade. O caso “Comando Vermelho” é paradigmático: o nome, associado ao crime organizado, foi alvo de sucessivos pedidos de registro — principalmente nas classes 25 (vestuário) e 41 (entretenimento) —, todos arquivados. A recusa do INPI impediu a formalização, mas não eliminou o poder simbólico de nomear o medo.

Esse fenômeno ecoa a ideia de outsider: a construção de identidade pela violação da norma. Algo que o imaginário popular já normalizou com Robin Hood, Ali Baba, Jack Sparrow, Bonnie e Clyde. Ao tentar converter a infâmia em produto, o proponente não apenas desafia o sistema jurídico, mas testa os limites da cultura de consumo — em que a visibilidade importa mais que o valor moral.

O Justiceiro, criado como anti-herói perturbado, tornou-se símbolo de unidades policiais e de facções armadas. A Marvel Comics chegou a emitir nota oficial, em 2019, para dissociar o personagem de ideologias violentas — sem sucesso. O mesmo se deu com o Mancha Negra, os Irmãos Metralha e a máscara de Guy Fawkes (V de Vingança), que migrou do cinema às ruas como ícone de rebeldia global.

Nessas transposições, a fronteira entre licenciamento e ressignificação desaparece: o personagem deixa de ser bem privado e se torna símbolo público — de contestação ou ameaça.


Apropriação Involuntária: quando as marcas descobrem que a contrafação não é o seu maior problema

Em 2024, reportagens baianas revelaram que as três listras da Adidas e o swoosh da Nike passaram a funcionar como códigos de facções rivais (“Tudo 3” × “Tudo 2”) em bairros de Salvador e Feira de Santana. Comerciantes e moradores foram ameaçados por usar tais marcas. Nenhuma dessas empresas planejou ou desejou tal associação, mas o efeito foi a criminalização simbólica do consumo.

O episódio ilustra o que J. Thomas McCarthy chama de tarnishment — ou diluição por mácula —, quando o significado social da marca é contaminado por contextos negativos. Nos EUA, em 1972, a Coca-Cola Company processou a Gemini Rising, Inc. por vender pôsteres com o slogan “Enjoy Cocaine”, reproduzindo o logotipo clássico da marca. A associação indevida maculava a reputação e transferia à marca valores indesejados e nocivos.

Sob o olhar da sociologia, a apropriação de marcas por grupos subalternos cumpre função identitária: cria distinção simbólica frente ao Estado e às elites de consumo. A “roupa de marca” chega, assim, ao extremo limite do pertencimento — o uniforme simbólico.


Cultura pop, crime e PI: os conflitos do uso indevido

De Lampião e Maria Bonita a Bonnie e Clyde, o fascínio pelos fora da lei é antigo. A cultura popular adora multiplicar signos de rebeldia — de Che Guevara à máscara de V de Vingança, passando pela bandeira dos Chapéus de Palha, do anime One Piece, usada recentemente em protestos na Indonésia e no Nepal.

Do ponto de vista jurídico, essas apropriações configuram uso indevido de obras ou imagens protegidas, mas sua escala e informalidade inviabilizam a repressão efetiva. São exemplos de ressignificação comunitária — a transposição de ícones globais para contextos locais de pertencimento e conflito. Nesses casos, tanto o direito de propriedade quanto o direito de personalidade perdem, temporariamente, sua efetividade.


Alguns Problemas Podem Ser Evitados

O direito de marca busca preservar a função econômica da distinção; a sociedade, contudo, opera pela polissemia — a multiplicidade de sentidos. Entre o registro e o imaginário há um abismo: o Estado pode impedir que o mal se torne produto, mas nem sempre pode evitar que o produto se torne mal.

A moralidade marcária filtra o ilícito na origem; já a apropriação simbólica transforma o lícito em signo de violência ou resistência. A Notoriedade Invertida revela, assim, o risco de todo branding: o de ser reconhecido pelo motivo errado.

Cabe às marcas compreenderem que também são fenômenos sociais, e desenvolver estratégias de monitoramento, comunicação e cooperação capazes de reagir sem amplificar o estigma — inspirando-se, por exemplo, em observatórios europeus de hate symbols.

Em última análise, o problema não é quando o problema encontra a marca, mas quando a marca, fascinada pela visibilidade, ainda que infame, não consegue evitá-lo.

E tudo o que uma marca não pode querer é confusão.


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