BLACK FRIDAY: DO CAOS DE FILADÉLFIA AO LABIRINTO DIGITAL BRASILEIRO

Como surgiu, por que virou termo genérico e como se proteger no maior evento do varejo moderno


A Black Friday nasceu de um colapso urbano nos Estados Unidos, transformou-se no maior fenômeno global do varejo e, hoje, é um terreno híbrido onde consumo acelerado, tecnologia, fraude e direito se encontram. No Brasil, tornou-se um evento de massa — e também um convite para golpes cada vez mais sofisticados. Entender sua origem, seu status jurídico e seus riscos é a melhor forma de atravessar o período com lucidez.


COMO SURGIU A BLACK FRIDAY E SUA CHEGADA AO BRASIL

A história da Black Friday não nasceu com descontos nem com campanhas publicitárias. Nasceu do caos urbano.

Nos anos 1960, na Filadélfia (EUA), policiais passaram a chamar de “Black Friday” a sexta-feira após o Dia de Ação de Graças, marcada por trânsito congestionado, lojas superlotadas e longas jornadas de patrulhamento. Era um “dia negro” para quem trabalhava nas ruas. Tentou-se substituí-la por “Big Friday”, sem sucesso.

Nos anos 1980, o varejo americano reinterpretou o termo sob outro prisma: “Black Friday” virou o momento em que as lojas saíam do vermelho para o preto nos balanços contábeis. A expressão foi incorporada positivamente e, com o avanço do comércio eletrônico, internacionalizou-se. Tornou-se a maior temporada de vendas do mundo.

No Brasil

A primeira edição brasileira ocorreu em 26 de novembro de 2010, exclusivamente online, por iniciativa de plataformas como Buscapé, Submarino e Americanas.

O evento rapidamente amadureceu: passou da popularização com desconfiança (“metade do dobro”) para a consolidação com varejo físico, fiscalização crescente do Procon e, nos últimos anos, lives, influenciadores, bancos e shoppings compondo campanhas nacionais.

Com o crescimento, vieram também novas ameaças: golpes digitais, clonagem de sites, deepfakes, pirataria e uso indevido de marcas.


“BLACK FRIDAY” COMO EXPRESSÃO GENÉRICA

Entendimento da LPI, do INPI e comparação com o USPTO

O art. 124, VI, da Lei de Propriedade Industrial (LPI) veda o registro de expressões meramente descritivas ou publicitárias. É o caso de “BLACK FRIDAY”.

Para o INPI, a expressão é genérica e promocional, equivalente a “Liquidação”, “Oferta Relâmpago” ou “Descontos Especiais”. Assim, não possui distintividade e não pode ser apropriada com exclusividade.

Nos Estados Unidos, o USPTO segue o mesmo entendimento: “Black Friday” é generic for promotional sales events, igualmente irregistrável como marca isolada.

A expressão, portanto, é de domínio público comercial.

Marcas compostas registradas no INPI

Embora o termo isolado seja irregistrável, o INPI aceita marcas compostas, desde que haja elemento distintivo. Exemplos reais:

  • BLACK FRIDAY PERNAMBUCANAS
  • BLACKFRIDAY CDL MANAUS
  • BLACK FRIDAY SMART FIT
  • BLACK FRIDAY BB – Banco do Brasil
  • BLACK FRIDAY ARICANDUVA
  • SHOW DA BLACK FRIDAY – Play9
  • PLANTÃO BLACK FRIDAY – Record

Nesses casos, protege-se o conjunto marcário (nome + logotipo + identidade visual), não a expressão genérica.


GOLPES ENVOLVENDO MARCAS E TRADE DRESS

Clonagem de sites, layouts e perfis falsos

Como todo grande evento de massa, a Black Friday tornou-se um dos ambientes digitais mais propícios para golpes que exploram marcas e identidades visuais como isca. A combinação entre consumidores ansiosos por boas ofertas e vendedores liquidando estoques reduzidos cria um clima de urgência — e a urgência é a melhor amiga do estelionatário.

Vale recordar a máxima estóica:
Tempus fugit sed festina lente — o tempo foge, mas apressa-te devagar.

Sites clonados, cópia de logotipos, perfis falsos simulando SAC, links maliciosos e descontos irreais são apenas algumas das armadilhas. Essas práticas configuram violação de marca, concorrência desleal, publicidade enganosa e fraude digital.

Quando o golpista reproduz cores, tipografias e mascotes, ocorre também violação do trade dress, reconhecido pela doutrina e jurisprudência brasileiras como proteção da identidade visual empresarial.


TYPOSQUATTING: DOMÍNIOS FALSOS

O typosquatting é a prática de registrar domínios quase idênticos aos oficiais — por exemplo, magasine.com, ameriicanas.com, amaz0n-oficial.com. Pequenas distorções gráficas enganam o olhar apressado.

Essas páginas replicam o site original para roubar dados, induzir compras falsas ou instalar malware. O fenômeno cruza Direito Marcário, Defesa do Consumidor e Segurança da Informação, podendo configurar desde crime contra a marca até estelionato.


IA GENERATIVA COMO VETOR DE FRAUDES

A partir de 2024, a IA generativa passou a ampliar a potência dos golpes: sites falsos clonados por algoritmo, deepfakes de influenciadores, e-mails corporativos falsos, chatbots enganosos e anúncios hiper-realistas disputam a atenção dos consumidores.

A fraude se tornou mais veloz que a capacidade de reação de empresas e autoridades. Em outras palavras: o consumidor que lute — e que se proteja.


PIRATARIA E CONTRAFAÇÃO EM MARKETPLACES

A zona cinzenta entre comércio digital, responsabilidade e oportunismo

Durante a Black Friday, a pirataria não cresce apenas em volume — cresce em sofisticação. Produtos falsificados se espalham pelos marketplaces com a mesma velocidade das promoções legítimas, criando um ambiente onde a busca por ofertas rápidas reduz a atenção e aumenta a vulnerabilidade.

Receita Federal, Anatel, Senacon e Procons intensificam operações, mas, no ambiente digital, o ponto mais delicado não é apenas o falsificador: é a plataforma.

Muitos marketplaces insistiram por anos na narrativa da neutralidade, como se fossem apenas vitrines. Mas, na prática, participam da cadeia de consumo: controlam pagamento, logística, publicidade, algoritmos de recomendação e campanhas institucionais. Quando fazem isso, deixam de ser intermediários e passam a ser fornecedores. E quem participa, responde.

Mesmo quando atuam de forma mais discreta, permanece o dever de diligência: remover anúncios suspeitos, bloquear vendedores reincidentes, verificar irregularidades e agir com rapidez. A omissão sistemática transforma neutralidade em negligência.

Se, além disso, a plataforma lucra com a venda ilícita, a discussão muda de omissão para participação direta — e quem lucra com o ilícito não pode alegar inocência.

A responsabilidade se resume a duas perguntas:
A plataforma tornou o golpe possível? Lucrou com ele?
Se a resposta for sim, é corresponsável.


CHECKLIST JURÍDICO PARA EMPRESAS E CONSUMIDORES

Para empresas

  • Registrar marca e variações.
  • Registrar domínios estratégicos e monitorar typosquatting.
  • Revisar direitos autorais de campanhas, imagens, trilhas e slogans.
  • Monitorar marketplaces, redes sociais e Google Ads.
  • Remover anúncios irregulares com rapidez.
  • Manter políticas claras de privacidade e de preços.
  • Reforçar a cibersegurança e a detecção de páginas falsas.

Para consumidores

  • Verificar o domínio antes de comprar.
  • Desconfiar de preços irreais, especialmente em eletrônicos.
  • Evitar clicar em links recebidos por mensagens.
  • Conferir CNPJ e reputação da loja.
  • Checar se o site possui HTTPS.
  • Usar comparadores de preço.
  • Preferir pagamentos rastreáveis, como cartão.

Viver é perigoso. Por que comprar não seria?

A Black Friday que nasceu como problema urbano atravessou décadas até se tornar um fenômeno global e, hoje, compõe um ecossistema híbrido entre varejo, tecnologia, direito e cibercrime. O que era apenas uma sexta-feira caótica tornou-se um espaço repleto de oportunidades — e armadilhas.

Como lembrava Graciliano Ramos, com sua precisão seca: viver é perigoso. A Black Friday apenas confirma: onde há pressa, há risco; onde há multidão, há oportunismo; e onde há promessa fácil, quase sempre há uma conta escondida.

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