A distinção estética como signo, identidade e disputa jurídica
O que Timberland, Louboutin, Osklen, Crocs e Hermès revelam sobre os limites entre design livre, secondary meaning e apropriação comercial.
Estilo e Identidade
Há quem esqueça.
Estilo não é apenas forma. É código social, expressão de pertencimento e, muitas vezes, campo de disputa simbólica. Nem todo design é marca ou mesmo desenho industrial e, a rigor, quase nenhum estilo nasce com proteção jurídica. A moda opera por circulação, repetição e adaptação, se socorrendo do direito, que é movido por leis, normas, regras e tipificidade, quando precisa preservar sua distinção.
Esses dois sistemas nem sempre conversam bem.
O desenho de um sapato, a posição de um ilhós ou o uso insistente de uma cor são, na origem, exercícios estéticos ou funcionais. Mas a repetição sistemática transforma gesto em assinatura. E a assinatura, quando reconhecida coletivamente, deixa de ser apenas estética ou função e passa a atuar como IDENTIDADE.
É nesse intervalo que emerge o “secondary meaning” ou segundo uso, quando o público já não vê a forma sem associá-la ao seu emissor mais famoso.
Do Desenho ao Signo
O direito marcário nasceu para proteger a distinção. Mas distinção é fenômeno social antes de ser jurídico. Por isso, o sistema não reage ao estilo: reage ao sentido. Ele só intervém quando a estética deixa de ser uma tendência e passa a operar como marca no imaginário coletivo.
Timberland, Osklen, Louboutin, Crocs e Hermès ilustram esse deslocamento. Nenhum desses elementos visuais — a bota amarela, os três ilhoses, a sola vermelha, o clog furado ou o desenho da Birkin — nasceu como marca. Tornaram-se marcas porque o público os reconheceu como tais.
O ponto decisivo não está exatamente na originalidade, embora ela não seja irrelevante. O ponto está na PERCEPÇÃO. O exame jurídico, nesses casos, aproxima-se mais da semiótica do que da técnica: importa menos o que o criador quis dizer e mais o que o consumidor entende quando vê.
A percepção, no fim, é sempre fenômeno social. É ela que transforma um objeto em signo, um detalhe em assinatura ou um estilo em identidade. E, quando se verifica o nascimento da função distintiva, o direito deixa de analisar estilo e passa a analisar significado.
Ordem Concorrencial
A jurisprudência brasileira evoluiu lentamente até reconhecer que copiar a aparência geral de um produto — ainda que sem copiar o nome — produz confusão, captura clientela e esvazia o esforço distintivo do titular.
O caso Crocs x Plugt (TJSP, 2021) é emblemático porque afirma algo óbvio, mas historicamente negligenciado: a proteção ao “trade dress” independe de registro e decorre da repressão à concorrência desleal. A perícia técnica, centrada em detalhes que pouco importam ao consumidor real, foi relativizada. A decisão não se impressionou com o número exato de furos no cabedal, nem com pequenas variações cosméticas. Importou a impressão global.
O tribunal adotou o ponto de vista do consumidor comum.
Secondary Meaning
Entre a Forma e a Função – O secondary meaning é a chave hermenêutica dessa nova fase. Não protege o design em si. Protege o significado adquirido. Quando uma forma se torna suficientemente reconhecida a ponto de indicar origem empresarial, ela ultrapassa o domínio da estética e ingressa no campo semiótico das marcas.
É um deslocamento do objeto ou ornamento para o signo. Esse processo foi o que consolidou:
- a sola vermelha como Louboutin,
- os três ilhoses como Osklen,
- a bota amarela como Timberland,
- o clog furado como Crocs,
- a Birkin como Hermès.
Nenhum desses elementos é juridicamente protegido porque é belo, original ou icônico. Eles são protegidos porque são reconhecidos como elementos próprios de uma determinada marca, tornando, eles próprios uma marca. O que importa é a associação.
Tabela da Distintividade
Casos emblemáticos da estética convertida em identidade comercial:
| Caso / Marca | Órgão | Tipo de Proteção | Fundamento | Resultado |
|---|---|---|---|---|
| Crocs x Plugt | TJSP | Trade dress | Impressão geral, confusão, secondary meaning | Procedência |
| Timberland | Justiça Federal / TJSP | Marca tridimensional | Distintividade adquirida | Proteção reconhecida |
| Louboutin | TJSP / TRF1 / INPI | Trade dress + marca de posição | Cor + localização | Proteção confirmada |
| Osklen | INPI | Marca de posição | Posição como signo | Primeiro deferimento do país |
| Vans x Marisa | TJSP | Trade dress | Conjunto-imagem | Procedência |
| Havaianas | TJSP | Trade dress | Notoriedade do conjunto | Procedência |
| Hermès – Birkin | Justiça brasileira | Direito autoral | Obra de design | Proteção reconhecida |
Restrições e Alcances
O direito não protege estética pura. Protege sinais capazes de orientar o consumo. Isso significa que:
- Estilo, enquanto tal, permanece livre.
Tendência, forma e escolha estética não são, por si, exclusivas de ninguém. A moda depende dessa liberdade. - Pode ser copiado, a menos que tenha adquirido significado secundário ou tenha sido registrado como marca ou desenho industrial.
A proteção surge quando o estilo deixa de ser apenas aparência e passa ou possa funcionar como indicativo de origem. - A proteção surge não da criação, mas do reconhecimento.
Nem sempre é a intenção do criador que importa, mas a leitura do consumidor. É ela que determina se a forma funciona como simples estética ou como sinal de origem. E esse processo pode operar também no sentido inverso: quando um elemento visual perde sua força distintiva pela repetição excessiva, sofre diluição e se transforma em “commodity”. O que antes era marca volta a ser apenas forma, não porque deixou de ser criado com propósito, mas porque deixou de ser percebido como distinto.
Aqui temos uma lógica inversa à do direito autoral. No autoral, importa quem cria. No marcário, importa quem identifica. O design pode ser tecnicamente simples e ainda assim distintivo, desde que o público o associe a um titular específico.
Esse deslocamento explica por que marcas como Louboutin e Osklen obtêm proteção para elementos mínimos — uma cor, uma posição — quando esses elementos são empregados de maneira consistente, reiterada e reconhecível ao longo do tempo.
A moda cria o elemento, o público lhe dá sentido e o direito protege o sentido.
Apropriação Involuntária
Nem sempre o titular escolhe seu destino simbólico. Assim como Adidas e Nike foram apropriadas como códigos de facções, produtos de moda também sofrem ressignificações culturais. Às vezes desejadas; às vezes constrangedoras; às vezes perigosas.
O que diferencia o designer de moda do titular marcário é que o designer cria estética; o titular administra significado. E a batalha jurídica contemporânea está mais próxima do controle de significado do que da contenção da forma.
O que está em disputa não é o objeto, mas o símbolo.
A Função da Marca é Distinguir. Simples Assim.
A moda opera no campo da sensibilidade; o direito, no campo da racionalidade. O encontro entre os dois produz tensões inevitáveis, especialmente quando formas repetidas se tornam signos e signos se transformam em ativos comerciais.
O secondary meaning é a ponte conceitual entre esses mundos. Ele delimita o momento em que o estilo — silencioso, cotidiano, repetido — cruza a fronteira e se converte em marca. É, nesse sentido, a antítese da diluição: enquanto o secondary meaning concentra significado e aprofunda a associação do público ao sinal, a diluição faz o oposto — dispersa, desgasta, erode. Um fortalece a identidade; o outro a desfaz.
Quanto pensamos em marcas, temos que compreender que o direito não protege o belo ou o útil, protege o identificável, aquilo que distinguível.
E tudo o que uma marca não pode querer — seja no crime, seja na moda — é confusão.
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