Entre o glamour e o grito: a flapper que virou caso jurídico
Betty Boop, antes de Marilyn, Madonna ou das Kardashians, já desafiava a moral da América com seus traços pretos e brancos. Foi a primeira mulher livre da animação — condenada e censurada por isso — mas, quase um século depois, ainda fatura milhões de dólares no mundo todo e continua sendo motivo de disputa.
Criada em plena Grande Depressão, em 1930, pela equipe dos irmãos Fleischer, ela cantava e dançava entre o desejo e a inocência, de minissaia, liga à mostra e olhar atrevido.
A plateia ria; os censores suavam. O que parecia um desenho inofensivo era, na verdade, o retrato do confronto entre libertação feminina e puritanismo, entre sensualidade e objetificação, jazz e acusações de apropriação cultural. Por trás do “boop-oop-a-doop” havia vozes sufocadas — e muitos contratos.
Flapper: sensualidade e escândalo
Betty surgiu no curta Dizzy Dishes (1930), desenhada por Grim Natwick como uma cantora canina de jazz — mistura de Helen Kane, Clara Bow e uma boa dose de subversão. Nos curtas seguintes, perdeu o focinho, ganhou cílios, corpo, decote e a voz de Mae Questel, tornando-se símbolo de sensualidade e independência feminina.
Sua inspiração foram as flappers — no Brasil, chamadas melindrosas — jovens rebeldes dos anos 1920 conhecidas por usar saias curtas, cabelo bob, ouvir jazz, dirigir, fumar em público e se maquiar, desafiando normas de comportamento. Com a quebra da Bolsa de Nova York em 1929 e o início da Grande Depressão, o estilo flapper perdeu popularidade, mas o ícone sobreviveu.
Betty, porém, nasceu cercada por homens: animadores, diretores, produtores e juízes — todos prontos para decidir o que ela podia ou não ser. Em Boop-Oop-a-Doop (1932), um empresário tenta abusá-la; ela reage com humor e resistência. Hoje a cena seria lida como denúncia de assédio; na época, foi recebida como piada. O mundo mudou — mas mudou tanto assim?
Plágio e direito de imagem — o processo Helen Kane vs. Fleischer Studios (1932–1934)
A cantora Helen Kane, famosa por I Wanna Be Loved by You, processou a Paramount e os Fleischer por plágio, alegando que Betty copiava sua aparência, voz e bordão “boop-oop-a-doop”. A defesa, porém, mostrou que Kane se inspirara numa artista negra esquecida, Baby Esther Jones, performer do Cotton Club.
“Nenhum estilo de performance é propriedade de alguém.”
Kane perdeu — e Betty venceu.
A tese de que estilos não são protegidos por direito autoral continua atual, como se viu recentemente no debate sobre a IA gerando imagens “no estilo Ghibli”. A Lei 9.610/1998, art. 8º, I, dispõe que não são objeto de proteção “ideias, procedimentos, sistemas, métodos, projetos ou conceitos matemáticos como tais” — e aí se inserem os estilos.
O caso serve como estudo de plágio, mas também revela um tempo em que pessoas negras eram representadas por caricaturas brancas, assim como, antes delas, mulheres eram interpretadas por homens. Décadas depois, historiadores questionaram a autenticidade das provas apresentadas — levantando a hipótese de uma montagem. As polêmicas em torno de Betty sempre foram parte da sua biografia.
Direitos fragmentados, contratos quebrados
O sucesso de Betty gerou dinheiro — e um labirinto jurídico. O Fleischer Studios produzia; a Paramount distribuía; e décadas depois ambos venderam e sublicenciaram os curtas a outras empresas (UM&M TV, Republic, NTA).
“A cadeia de titularidade estava quebrada.”
— Tribunal do 9º Circuito, EUA (2011)
O estúdio não pôde provar que ainda possuía os direitos autorais integrais — apenas a marca registrada “Betty Boop”, que sobreviveu comercialmente. Resultado: uma personagem cuja obra é juridicamente indeterminada, mas cuja marca é plenamente explorável.
O copyright se perde, mas o trademark tende ao infinito.
Essa tem sido a solução adotada por muitos estúdios — como a Disney — que sempre registraram não apenas o nome, mas também a imagem e a silhueta de seus personagens como marcas. Enquanto os direitos autorais inevitavelmente caem em domínio público, os direitos marcários podem ser renovados indefinidamente, mantendo o controle econômico sobre o personagem mesmo após o vencimento do copyright.
O espelho da Lei 9.610/98
O enredo jurídico de Betty Boop é o pesadelo de qualquer advogado de PI. Por casos como esse, a Lei Brasileira de Direitos Autorais (LDA) é minuciosa ao tratar da cessão de direitos, que pode ser parcial ou total.
A LDA, nos arts. 49 a 52, prevê que a cessão deve ser por escrito e abrange apenas os direitos expressamente mencionados (art. 49, § 2º). O silêncio beneficia o autor, não o cessionário. Se o contrato menciona apenas “televisão aberta”, a obra não pode ser exibida em streaming — o direito não se presume.
Betty Boop é metáfora perfeita da especialidade da cessão — princípio que ainda hoje exige atenção. Os Fleischer enriqueceram no curto prazo, mas pagaram o preço com o tempo.
Censura, perseguição e declínio
Em 1934, o Código Hays impôs moral puritana a Hollywood. Betty, antes livre e insinuante, virou doméstica, maternal e “apropriada”. Sua popularidade despencou. A personagem que ousou dizer “não” à coerção sexual foi silenciada pela coerção moral.
Curiosamente, seus primeiros curtas — cheios de erotismo e violência simbólica — traziam um dos primeiros retratos femininos de resistência em Hollywood. Aqui, Betty Boop é também metáfora de exclusão e apagamento. Por isso, seus desenhos duraram apenas uma década.
Mais contratos e vitrines — o império da nostalgia
Décadas depois, Betty ressurgiu não como personagem, mas como marca. Sua silhueta virou perfume, camiseta, caneca e símbolo de “empoderamento feminino retrô”. Agora sua imagem é vendida como ícone da liberdade.
O licenciamento global é gerido pela Global Icons Inc., que representa o Fleischer Studios, e, no Brasil, pela Vertical Licensing Ltda. — responsável por coleções como as da Semax Brasil, lançadas em 2023. A heroína que não podia mostrar as pernas virou vitrine de moda — e fonte de royalties multimilionários.
Acusações de apropriação cultural e de feminismo de vitrine
Betty Boop dançou ao som de Cab Calloway, Louis Armstrong e Don Redman, artistas que levaram o jazz e o swing negro às telas brancas. Mas o protagonismo seguiu o padrão da indústria: músicos negros como moldura, a mulher branca como estrela.
Assim, a personagem é hoje analisada como símbolo duplo — de empoderamento e de apropriação. O feminismo de Betty foi mediado por homens; sua voz, emprestada; seu corpo, censurado; sua imagem, vendida. E, ainda assim, sobreviveu — porque há beleza na resistência.
O mito do Popeye e o fim da era Boop. Será?
Em 1933, Popeye estreou no curta Popeye the Sailor, dentro da série Betty Boop. Ela aparece dançando hula — sensual, autônoma e breve. O público adorou o marinheiro; o estúdio percebeu: a era Boop terminava — mas não sem novo escândalo.
Acusaram Betty Boop de ter um caso com Popeye, eterno namorado de Olívia Palito — outra personagem feminina que, com o tempo, perdeu protagonismo. Popeye continuou e virou franquia; Betty também.
O legado jurídico e simbólico
Betty Boop é um dos mais completos estudos de caso em Direito Autoral aplicado à Cultura Pop. Em sua trajetória, reúne praticamente todos os temas contemporâneos da Propriedade Intelectual:
| Tema | Manifestação em Betty Boop |
|---|---|
| Criação derivada | Inspiração em Helen Kane e Baby Esther |
| Plágio e originalidade | Processo judicial 1932–34 |
| Cessão e licenciamento | Fragmentação contratual e autoral |
| Apropriação cultural | Uso de expressões afro-americanas sem crédito |
| Objetificação e censura | Sexualização e moralização pós-1934 |
| Marca × obra | Manutenção do valor via trademark |
Epílogo
Betty Boop não foi feminista, nem militante, nem proprietária — mas, justamente por não ser, acabou sendo.
Uma ficção que antecedeu o discurso. E talvez por isso ainda diga mais sobre nós do que sobre o seu tempo: enquanto hoje as “meninas radicais” se acreditam libertárias, Betty já estava lá — livre, ousada e eternamente desejada.

