Governo japonês chama animes e mangás de “tesouros insubstituíveis”, cobra medidas da OpenAI — e o debate jurídico expõe o limite entre estilo, autoria e imitação
A tensão entre tradição, algoritmo e propriedade intelectual
O governo do Japão solicitou formalmente à OpenAI que impeça sua ferramenta de vídeo, Sora 2, de gerar conteúdos que imitem o estilo de animes e mangás japoneses sem autorização. O ministro Minoru Kiuchi, responsável pela estratégia japonesa de propriedade intelectual, classificou as produções como “tesouros insubstituíveis” da cultura japonesa e afirmou que o país “agirá apropriadamente” se a tecnologia violar direitos autorais.
A questão atinge o âmago da autoria como expressão de um estilo — categoria que, por definição jurídica, não é protegida pela lei de direitos autorais. Assim, o aviso do ministro japonês perde força jurídica, pois copiar um estilo, por si só, não configura violação. É o mesmo dilema já visto no caso Betty Boop: quando a cópia não é literal, mas estética, a infração deixa o campo do direito e entra no da ética.
Nintendo, IA e o bastidor regulatório
Enquanto Tóquio intensifica a pressão sobre a OpenAI, a Nintendo viu seu nome surgir no centro do debate. Reportagens afirmaram que a empresa teria feito lobby no governo japonês para endurecer regras sobre IA generativa, em defesa de suas franquias. A companhia negou qualquer atuação política, afirmando apenas que continuará “tomando as ações necessárias contra violações de seus direitos de propriedade intelectual”.
O certo é que, depois disso, o ministro Minoru Kiuchi veio a público para reclamar formal e oficialmente. A situação reforça a percepção de que as grandes detentoras de PI estão se mobilizando — direta ou indiretamente — diante da avalanche de imagens e vídeos produzidos por IA.
O que está (e o que não está) protegido
De acordo com a legislação internacional — e com a Lei 9.610/98 no Brasil —, a proteção autoral recai sobre a obra em sua forma concreta de expressão, e não sobre o estilo, o gênero ou a técnica de criação. Isso significa que o “traço de mangá” ou a “estética anime” não são passíveis de monopólio, ainda que um estúdio seja reconhecido por um padrão visual. A lei protege o personagem específico, o roteiro, o conjunto criativo original — mas não o modo de desenhar olhos grandes ou usar sombras verticais.
Casos como Pato Donald (Disney) e Patolino (Warner) ilustram bem essa convivência: personagens com traços e comportamentos similares — e ainda assim plenamente legítimos, justamente porque o estilo não é monopólio de ninguém. O mesmo princípio se aplica aqui: o fato de a Sora 2 gerar “algo com aparência de anime” não implica, por si só, violação jurídica — embora possa ferir valores culturais, éticos ou comerciais.
O problema da “autoria algorítmica”
A novidade está no agente: a máquina. Quando uma IA aprende padrões visuais a partir de milhões de imagens — muitas delas protegidas —, o resultado não é simples coincidência estilística, mas recombinação estatística. Essa recombinação desafia os fundamentos da lei, feita para humanos, não para modelos probabilísticos.
O Japão, ao acionar a OpenAI, parece querer redefinir a fronteira entre inspiração e apropriação automática, criando uma terceira categoria: o “uso derivativo algorítmico”. O risco é abrir um precedente que confunda “influência estética” com “infração”, tornando impossível o próprio aprendizado visual das IAs e, por extensão, o ato humano de se inspirar.
Quando alguém fala de estilo barroco, cubista ou modernista, sabemos o que esperar — mas não necessariamente de quem esperar. Por isso, essa questão se torna simples quando substituímos a máquina e voltamos ao humano.
Estilo, identidade e poder cultural
Mesmo que o estilo não seja protegido, ele é identitário. No caso japonês, o traço do mangá e a narrativa dos animes são parte da construção nacional do soft power. Por isso, a defesa é simbólica, diplomática e econômica. O Estado japonês, ao chamar esses gêneros de “tesouros insubstituíveis”, eleva o estilo à categoria de patrimônio cultural, ainda que não o transforme em propriedade.
Na prática, hoje nem só o Japão produz mangás e animes. China, Coreia e Tailândia vêm se aproximando da mesma força produtiva, muitas vezes em cooperação com estúdios japoneses. Aqui se revela o paradoxo central: o direito não protege o estilo, mas a indústria vive dele. Daí a tensão entre artistas que desejam reconhecimento, empresas que buscam controle e algoritmos que aprendem sem pedir licença. Mas por que apenas os algoritmos deveriam pedir licença?
Lições para o Brasil e o mundo criativo
A ofensiva japonesa e a reação da Nintendo acendem um alerta global. No Brasil, o INPI e o Ministério da Cultura ainda não definiram parâmetros para treinamento de IA com base em obras registradas. Enquanto isso, artistas e estúdios locais enfrentam o mesmo dilema: como proteger a originalidade de um traço, se o traço — juridicamente — não é de ninguém?
Para o criador, a resposta talvez esteja menos no tribunal e mais no contrato — e no comportamento ético dos consumidores: cláusulas de licenciamento específicas, metadados de autoria, rastreamento digital, certificações culturais e campanhas educativas podem ser as novas ferramentas de defesa estética.
Estilo não é propriedade.
A Lei 9.610/98 protege a obra concreta, não o modo de fazê-la. A imitação estética pode ser moralmente questionável, mas juridicamente é livre — desde que não reproduza uma criação individualizada.
Conclusão
A disputa entre Japão e OpenAI é apenas o prefácio de um longo livro que começa a ser escrito. Estamos caminhando para um mundo em que as máquinas também criam — e teremos de reaprender o que significa criar em um mundo assim.
A IA hoje é ferramenta: auxilia a produção de arte, mas não substitui o artista. Basta observar o resultado apresentado por quem conhece a arte e por quem tem apenas noções rudimentares ao usar IA.
O futuro, esse sim, parece interessante…
Fonte de referência: The Verge, GamesRadar+, Level Up News, O Vício, Kazinform.

