LAÇO BRANCO, VIOLÊNCIA HISTÓRICA E O DEVER MASCULINO

Quando leis avançam e a cultura falha, o soft power revela uma vergonha persistente

O Laço Branco, símbolo internacional do compromisso dos homens no combate à violência contra mulheres e meninas, reaparece no Brasil todos os meses de dezembro como um gesto simples diante de um problema estrutural.

Paradoxalmente — mas nem tanto assim —, em um país que construiu, desde 2006, um dos mais extensos arcabouços legais de proteção à mulher, reconhecido inclusive por organismos internacionais, os índices de violência contra a mulher seguem em ascensão. Quando a violência persiste apesar das leis, a explicação já não está no direito, na elevação das penas ou na ameaça de coerção.

Está na cultura, na história e na recusa masculina de assumir uma parcela decisiva de responsabilidade sobre um problema que deveria constranger qualquer sociedade minimamente comprometida com a ideia de humanidade.

O país do Amazonas e a memória seletiva da força feminina

O Brasil carrega, desde a origem de seu maior símbolo geográfico, uma contradição mal resolvida. O Rio Amazonas recebeu esse nome após o relato de Francisco de Orellana, em 1542, ao afirmar ter sido atacado por mulheres guerreiras indígenas. A associação com as amazonas da mitologia grega foi a tentativa europeia de enquadrar algo que escapava ao seu repertório: mulheres que iam à guerra como combatentes plenas, não como satélites da violência masculina.

Essas guerreiras, conhecidas como Icamiabas, não eram exceções exóticas. Eram expressão de uma organização social em que mulheres não eram reduzidas a espólio, a “mulheres de conforto”, a apoio logístico, serviçais ou objeto de proteção paternalista. O simples fato de essa correlação raramente ser lembrada revela a profundidade cultural do problema.

A história brasileira registra outros episódios semelhantes. Maria Quitéria empunhou armas na Independência; Maria Felipa liderou ações de sabotagem contra tropas coloniais; Dandara dos Palmares organizou resistência armada; Anita Garibaldi combateu em diferentes frentes; Bárbara de Alencar conspirou, foi presa e torturada por enfrentar o poder imperial; Olga Benário Prestes foi entregue grávida ao regime nazista.

Essas mulheres desorganizam a narrativa confortável segundo a qual a o poder de decisão e ação pertence ao homem e a submissão, à mulher. Foram apagadas física e historicamente justamente por isso.

Da guerreira ao corpo disponível: a violência organizada

A história, no entanto, não se resume à resistência. Ela também revela como, em diversos contextos, a mulher deixou de ser combatente para se tornar instrumento de dominação, como ocorreu em sistemas de escravidão sexual organizados durante conflitos armados.

“Mulheres de Conforto” foi um mecanismo, institucionalizado pelo Exército Imperial Japonês na Segunda Guerra Mundial e que afetou dezenas a centenas de milhares de mulheres — sobretudo coreanas, chinesas e de outros países ocupados —, tornou-se um dos exemplos mais bem documentados de como a violência sexual foi organizada como política de controle e humilhação.

No mesmo período histórico, a Itália viveu o chamado Marocchinato, quando Goumiers, tropas coloniais francesas oriundas do Marrocos que lutavam ao lado das forças aliadas, após vitórias em batalhas particularmente duras, perpetraram violência sexual em massa contra a população civil local. Mulheres, homens e crianças foram atacados em uma sucessão de crimes que a história preferiu registrar como efeito colateral da guerra. Esses episódios foram imortalizados no romance La Ciociara, de Alberto Moravia, e no filme homônimo de 1960, estrelado por Sophia Loren, como denúncia cultural de uma verdade incômoda: a violência sexual organizada foi generalizada, não escolheu lados nem bandeiras. Fez a escolha de Giges — e, com ele, a escolha de todos os covardes: a oportunidade, o poder e o silêncio.

Guerras coloniais, conflitos civis, ocupações militares e regimes autoritários repetiram o mesmo padrão: violência sexual organizada, tolerada ou estimulada como mecanismo de dominação. A mulher deixa de ser sujeito histórico e passa a ser território. O corpo converte-se em linguagem de guerra.

Esse padrão não pertence a um país, a uma cultura ou a um período específico. Ele atravessa séculos e continentes. Ignorá-lo não é apenas falha histórica. É reprodução cultural da violência, travestida de esquecimento conveniente.

O direito brasileiro avançou — e muito

No plano jurídico, o Brasil produziu uma resposta robusta. A Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) tornou-se referência internacional, citada por organismos como a ONU Mulheres como modelo de enfrentamento à violência doméstica e familiar.

A legislação foi ampliada com a tipificação do feminicídio (Lei nº 13.104/2015), o reconhecimento da violência psicológica (Lei nº 14.188/2021) e a expansão de medidas protetivas de urgência.

Projetos mais recentes buscam atingir a camada simbólica do problema, como a proposta de inclusão da misoginia no rol de práticas discriminatórias da Lei nº 7.716/1989. Paralelamente, consolidaram-se delegacias especializadas, secretarias de políticas para mulheres e planos nacionais intersetoriais.

No papel, o sistema existe. Na prática, os números continuam a crescer — fato reconhecido em relatórios do Conselho Nacional da Justiça (CNJ), do Ministério da Justiça e de organismos internacionais. Quando um sistema normativo dessa magnitude falha em produzir mudança social proporcional, os símbolos passam a ocupar o espaço que o direito não alcança.

Quando a norma não alcança a cultura

Esse descompasso expõe um limite incontornável do direito: nenhuma lei substitui uma cultura que não a sustenta. O Judiciário pode decidir, o Executivo pode estruturar políticas públicas, o Legislativo pode tipificar condutas. Mas, quando a violência persiste, o problema já não está na ausência de norma. Está na tolerância social silenciosa que a antecede.

É nesse ponto que o debate deixa de ser técnico e se torna moral. Não no sentido religioso ou panfletário, mas no sentido clássico: o da responsabilidade pelo outro.

O Laço Branco como soft power social

O Laço Branco surge exatamente nesse vazio. Ele não é instrumento jurídico nem política pública. É soft power social em sua forma mais incômoda: o constrangimento organizado.

Não é símbolo de virtude. É símbolo de falha. Ele existe porque ainda é necessário dizer o óbvio. Porque ainda é preciso que homens afirmem publicamente que não violentam, não silenciam e não relativizam a violência contra mulheres.

O risco do estado de exceção social

Há um efeito colateral pouco discutido na multiplicação de leis sem transformação cultural equivalente. Forma-se um ambiente de antagonismo permanente, no qual homens e mulheres passam a se enxergar como campos opostos. As amazonas mitológicas são um alerta, não objeto de culto.

O antagonismo não protege as mulheres e não educa os homens. Apenas cristaliza um conflito que jamais deveria ter existido e não há um texto sagrado que diga o contrário disso.

A pergunta que o direito não responde sozinho

O Laço Branco é triste porque revela falência e é uma vergonha, no século XXI, ainda ser necessário. Se a violência contra a mulher atravessa séculos, culturas e regimes políticos, não é porque faltaram leis. É porque faltou assunção masculina de responsabilidade histórica, cultural e simbólica.

O homem que pratica violência contra a mulher — física, simbólica ou historicamente — gosta mesmo de mulher? É isso que devemos nos pergutar.


Leituras correlacionadas no Revisium

Para quem acompanha esse debate, outras leituras ajudam a ampliar o quadro e aprofundar a compreensão sobre direito, cultura e poder simbólico:

Rubens Baptista escreve sobre propriedade intelectual, estratégia e cultura.

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