O que Yeats, Zé Ramalho e o Hulk têm a ver com Oswald de Andrade? Antropofagia, Plágio ou um Mexidão?

Entre antropofagia e plágio, a jornada do poema “The Sorrow of Love” — da poesia irlandesa à HQ americana, até chegar à MPB brasileira — revela dilemas autorais à luz da Lei 9.610/98 e da eterna pergunta: quando devorar vira infringir?


Movimento Estético ou Infração?

Em 1982, um LP de Zé Ramalho ecoou versos que haviam atravessado o século e o oceano.

“A força que habita a escuridão…”

A canção Força Verde abria com o mesmo lirismo que, mais de 80 anos antes, o poeta irlandês William Butler Yeats lançara em The Sorrow of Love.

Antes de virar música, o poema virou narração de HQ: em 1971, Roy Thomas e Herb Trimpe inseriram os versos na edição americana de The Incredible Hulk #140; em 1972, a versão brasileira trouxe a tradução, creditando Yeats.
Isso deve ter ajudado muita gente a arrumar desculpas — num tempo em que HQ ainda não era vista como cultura.

Mas quando a letra da música reproduz exatamente a tradução publicada na revista em quadrinhos, a pergunta inevitável é: teria sido uma homenagem, uma inspiração ou uma apropriação indevida?

E afinal, Oswald de Andrade não defendia justamente essa “deglutição criativa” da cultura alheia no Manifesto Antropófago?

A fronteira entre intertextualidade, domínio público e infração autoral é mais nublada do que parece. No Brasil, o assunto é regulado pela Lei 9.610/98 e pela Convenção de Berna, mas, na prática a teoria costuma ser outra.


A Jornada dos Versos: da Irlanda ao Brasil via Marvel

William Butler Yeats, Nobel de Literatura, escreveu The Sorrow of Love no final do século XIX. A obra tornou-se clássica, amplamente citada em acervos como o da The Poetry Foundation.

The Incredible Hulk #140 (Marvel), publicada em abril de 1971, roteirizada por Roy Thomas e ilustrada por Herb Trimpe, abre com versos de Yeats. Na edição brasileira, lançada em 1972 pela editora GEA (Grupo de Editores Associados) — comandada por Ernesto Carneiro —, o texto foi mantido integralmente e creditado ao autor original, prática comum nas adaptações da época.

Zé Ramalho, uma década depois, lança o LP Força Verde (1982), cuja faixa-título reproduz, sem alteração relevante, os versos da tradução publicada na revista.
Na época, não houve crédito a Yeats, à Marvel ou ao tradutor da GEA — o que gerou controvérsia e foi noticiado pela revista Veja e outros veículos.
Em edições posteriores, o nome de Yeats passou a constar, o que indica reconhecimento tácito da origem. Mas aqueles versos, somados à Força Verde… formaram um mexidão autoral difícil de digerir.

Acertou dois pássaros com uma só pedrada

Yeats faleceu em 1939, e como a lei brasileira exige 70 anos contados de 1º de janeiro do ano subsequente ao falecimento para entrada em domínio público (art. 41, Lei 9.610/98), isso só ocorreu a partir de 2010.

Portanto, em 1982, os versos ainda estavam protegidos por direitos autorais — e a tradução brasileira, por sua vez, também constituía obra derivada protegida autonomamente (art. 7º, XI).


Antropofagia Não é Permissão Para Copiar

Oswald de Andrade, em 1928, dizia:

“Só a antropofagia nos une…”

Defendendo uma estética de absorção e transformação das influências culturais, apresentou um programa estético, uma forma de digestão poética — devorar, absorver e transformar em algo novo e miscigenado, mas, a ideia é não copiar.

Assim como o benchmarketing (análise de concorrentes) não autoriza copiar marcas, patentes ou trade dress, a antropofagia artística também exige criação nova, que nasce da apropriação cultural indo além dela. Sim, benchmarketing é uma forma de antropofagia. Para quem julgava as aulas de arte e literatura sem sentido, nesse momento – Receba!

O propósito antropofágico é transformar, reinterpretar e incorporar — sem abrir mão da identidade de quem cria. E tudo dentro da Lei de Direitos Autorais, que reconhece que transformar é diferente de reproduzir.


O que diz a Lei 9.610/98 – A Lei de Direitos Autorais Brasileira?

  • Art. 46, III: citação é permitida com finalidade específica (crítica, estudo etc.) e crédito obrigatório.
  • Art. 47: paródias e paráfrases são livres desde que não sejam reprodução servil e não desmereçam a obra original.
  • Art. 29: adaptações, traduções, inclusões em fonogramas ou outras transformações exigem autorização prévia do autor ou titular.
  • Art. 7º, XI: as traduções e adaptações são obras derivadas e protegidas como criação nova.

Mesmo em uma “homenagem” ou “citação”, a reprodução literal, sem autorização e/ou sem crédito, caracteriza infração autoral.
Por isso, no prato de Zé, o que era para ser antropofagia acabou virando um mexidão jurídico muito indigesto.


E quando acontece “Plágio de Plágio”?

A expressão “plágio de plágio” é instigante, mas tecnicamente imprecisa. O direito não enxerga uma “cadeia de perdões”, e sim uma cadeia de responsabilidades.

Quando alguém copia de quem já copiou, ambos respondem ao titular original e, normalmente, respondem isolada e individualmente. Processos e indenizações, podem ser reunidos em caso de aproveitamento conjunto.

No caso concreto, houve reprodução de versos de Yeats (ainda protegidos em 1982) e de sua tradução publicada em 1972 (obra derivada protegida). Por isso, antes foi dito que acertou dois pássaros com uma só pedrada, qualquer um dos dois, isolada e individualmente, poderia ter questionado judicialmente.

Não há herança de culpa, há apenas nova infração.


E se estivesse em Domínio Público?

Desde 2010, Yeats está em domínio público no Brasil. Isso permite:

  • Criar novas traduções a partir do original.
  • Usar o texto original livremente, sem pagar direitos ao espólio.

Contudo, não permite:

  • Usar traduções pré-existentes sem autorização.
  • Reproduzir expressões textuais de terceiros ainda protegidas.

O domínio público abre o conteúdo-base, mas, não desbloqueia suas derivações.
A tradução, a música e a adaptação continuam a ter proteção própria e independente.


Engenharia de Direitos

A lição dos Modernistas, mesmo quase um século depois, continua atual:

Devore para transformar.

A criatividade pode e deve andar lado a lado com o compliance: com pesquisa de origem, créditos adequados e reinterpretação crítica, a arte segue viva, segura e remunerada.


A Fome e a Lei

No fim das contas, a arte não é inocente — nem deve ser.
O mesmo apetite que moveu Oswald de Andrade a devorar o mundo moveu Yeats, o Hulk, Zé Ramalho e todo criador que ousa digerir o que veio antes.
Quando Isaac Newton disse: “Se enxerguei mais longe, foi por ter subido nos ombros de gigantes”, falava — sem saber — de benchmarking, de antropofagia, de tudo o que se aprende mastigando o passado.

A diferença está no resultado:
quando há transformação, é antropofagia;
quando há repetição, é plágio.

A Propriedade Intelectual não existe para punir a fome, mas para impedir a escassez.
Porque quando o banquete criativo se transforma num buffet de cópias,
logo não haverá mais o que comer — nem quem cozinhe.

A linha entre inspiração e infração é tão tênue quanto a que separa o gênio do jeitinho.
E se Oswald de Andrade ainda estivesse por aqui, talvez resumisse tudo num verso que caberia tanto num manifesto literário quanto numa sentença judicial:

“Tupi or not Tupi — eis a questão jurídica.”


Nota de Transparência

Este conteúdo foi produzido com base na Lei 9.610/98, registros de imprensa (Veja, 1982), acervo literário de W.B. Yeats (The Poetry Foundation) e publicações especializadas (Universo HQ, O Vício).


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