OpenAI, Disney, Japão, bolhas e melancias

Entre acordos bilionários, fiscalização algorítmica e a ressaca do hype, a propriedade intelectual começa a se reorganizar na era da inteligência artificial.


O acordo que pode ser a estrela polar

O acordo firmado entre a Disney e a OpenAI, anunciado no final de 2025, não foi apenas mais um contrato robusto no setor de tecnologia e entretenimento. Envolveu o licenciamento de personagens, universos narrativos e ativos autorais para uso em sistemas de inteligência artificial generativa, com cifras bilionárias, compromissos de uso responsável e a promessa de novos modelos de exploração econômica da propriedade intelectual.

Enquanto isso, do outro lado do mundo, o Japão passou a investir no uso de IA para intensificar o combate à pirataria de mangás e animes, anunciando sistemas voltados à detecção de padrões, mapeamento de redes ilegais e aceleração de medidas de repressão. O inimigo de ontem pode ser o aliado de hoje — sem deixar de ser o adversário de amanhã. Afinal, a discussão sobre o treinamento de modelos de IA com obras protegidas ainda está longe de um consenso definitivo.

Tudo isso ocorre em meio a um debate mais amplo sobre uma possível bolha da inteligência artificial, inflada por expectativas excessivas, capital abundante e promessas que ainda buscam lastro econômico real. O cenário é global, jurídico, econômico e, acima de tudo, humano.

O fim da profecia do colapso autoral?

Durante meses, a narrativa dominante sugeriu que a inteligência artificial representaria uma ruptura quase terminal com o direito autoral. Falava-se em colapso da criação, em pilhagem automatizada da cultura, em um futuro no qual a autoria se tornaria apenas um detalhe incômodo. Em tempos de multiversos, é verdade, tudo ainda pode acontecer.

Por ora, porém, o acordo entre Disney e OpenAI desmente a profecia mais apressada. O que se desenha não é o fim da propriedade intelectual, mas sua reorganização para continuar operando como infraestrutura econômica. Conteúdo deixou de ser apenas obra para se tornar insumo estratégico, negociável, licenciado e regulado.

Há algo de deliberadamente discreto nesse movimento. Ele passa ao largo de manifestos inflamados e de cruzadas morais que, como quase sempre, são conduzidas por quem observa de fora. No lugar do espetáculo, instala-se um mundo silencioso de cláusulas, auditorias e mecanismos de compliance, ajustando as regras práticas com as quais passaremos a conviver.

Dizem que a maior virtude do ser humano é a sobrevivência. Se assim for, assistimos a mais uma de suas reviravoltas. O direito autoral, tantas vezes acusado de rigidez, revela novamente sua vocação mais profunda: adaptar-se para continuar existindo.

O Japão sendo Japão

O Japão sempre soube absorver culturas, transformando-as em algo próprio, mesmo nos períodos em que se fechou ao mundo. Quando percebeu a necessidade de se modernizar, não hesitou em abandonar samurais — preservando os ideais, mas recontando-os à luz de novas circunstâncias. Há algo mais japonês do que Super Mario Bros?

Durante anos, setores culturais japoneses denunciaram o uso de mangás e animes no treinamento de modelos de IA como uma forma de espoliação cultural. A crítica não era retórica; era legítima. Houve treinamento efetivo e produção derivada com base em propriedade intelectual japonesa. Hoje, a indústria de mangás, animes, jogos e merchandising do país é suficientemente relevante para que o governo japonês mire rivalizar, até 2033, com o peso econômico de setores tradicionais como o automobilístico. Como quase sempre, o debate termina onde começa: dinheiro. Muito dinheiro.

A ABJ — Authorized Books of Japan estima que a pirataria de mangás cause prejuízos da ordem de US$ 55 bilhões por ano à indústria editorial. Diante disso, o Estado japonês adotou uma postura pragmática. Passou a implementar políticas públicas e investir em inteligência artificial para identificar redes de pirataria, cruzar dados de distribuição ilegal e intensificar a remoção de conteúdo ilícito.

Sites ilegais vêm sendo derrubados e responsáveis processados. Não é inconcebível que, no futuro, se discuta também a responsabilização de usuários finais, afinal, rastros digitais raramente desaparecem. Enquanto isso, como em uma obra de Junji Ito, uma bolha começa a se formar no horizonte.

Só bolhas de sabão não dão medo

A sombra da bolha da IA paira sobre o mercado. Há capital demais perseguindo promessas vagas, feitas por empresas que ainda não conseguem demonstrar modelos de negócio sustentáveis. Se essas companhias são as novas ferrovias do século XIX ou apenas tulipas, ainda não se sabe.

O que parece certo é que a geopolítica continuará empurrando a evolução das inteligências artificiais. A tecnologia não será abandonada, nem retirada dos usuários que a alimentam ativa, alegre e fielmente com dados, atenção e dinheiro.

Muitas empresas desaparecerão, como aconteceu — não faz tanto tempo — com as pontocom. Não será o fim da tecnologia, mas o encerramento de uma fase de ingenuidade coletiva, um ciclo que se repete a cada geração. A IA não sumirá; tende a se concentrar.

Highlander corporativo: apenas um pode restar

Talvez o destino da inteligência artificial seja semelhante ao dos sistemas operacionais. Poucos sobreviverão como infraestrutura central. Outros existirão como soluções específicas, discretas, quase invisíveis. A maioria desaparecerá sem obituário ou memória.

Esse tipo de concentração econômica não é exceção, mas regra. O universo se expande, depois se contrai, criando monopólios que mais tarde implodem — ou são implodidos — apenas para reiniciar o ciclo. Nada de realmente novo sob o céu.

O tempo

Talvez o Conde de Monte Cristo tenha mesmo razão:

“Toda a sabedoria humana está contida nestas duas palavras: esperar e ter esperança”.

A carroça segue andando.
Devagar, as melancias vão se ajeitando.


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