Softpower e Antropofagia: quem guarda o limiar?

Cabala, Jesus, Gêngis Khan, Cultura Pop e o risco de abrir a porta errada na economia simbólica do século XXI.


Hardpower, Softpower — o importante é o Power

Há momentos na história em que um simples gesto — abrir uma porta, aceitar um convite, buscar ajuda no lugar errado — desencadeia séculos de desdobramentos. Roma não entrou na Judeia pela força. Entrou porque foi chamada. E poucas metáforas são tão perfeitas para explicar o mundo contemporâneo quanto essa entrada quase cordial, que antecede toda dominação verdadeira.

Em 63 a.C., dois irmãos brigavam por uma coroa, mas o que realmente estava em disputa não era o trono — era o limiar. Hircano II e Aristóbulo II não imaginaram que Pompeu, o homem que esmagara Mitrídates e redesenhara a geopolítica do Oriente, viria com mais fome do que diplomacia. Roma não queria decidir entre eles. Queria decidir sobre eles.

E decidiu.

A partir daquele convite, o destino da Judeia ficou selado. O povo que recusara ser helenizado tornou-se romanizado à força da própria ingenuidade. Três gerações depois, Jesus — leitor atento de política e das Escrituras — percebeu o que ninguém queria admitir: muralhas de nada servem para quem não controla a entrada. Seus alertas não eram profecias nebulosas, mas relatórios de risco escritos em forma de parábola: “Quando virdes Jerusalém cercada de exércitos, sabei que está próxima a sua desolação.” “Não ficará pedra sobre pedra que não seja derrubada.” “Fujam para os montes.”

Quando Tito finalmente cercou Jerusalém, em 70 d.C., o desastre já estava consumado muito antes da primeira catapulta ser acionada. A tragédia não começou no ataque. Começou no convite.

Jerusalém foi tomada após um dos piores cercos e massacres de que se tem notícia. O número de crucificados é indizível e o Templo foi destruído. Inicia-se a diáspora. Além dos significados cabalísticos dos números 63 e 70, estava claro que aquele convite não poderia dar muito certo.

É nesse detalhe — o simples e cordial gesto de abrir a porta — que se esconde toda a lógica espiritual, política e tecnológica que, dois mil anos depois, também define o século XXI.


Drácula, Frankenstein e o terror que pedimos para entrar

A cultura pop, sempre mais honesta do que os tratados políticos, transformou essa lógica em metáforas brilhantes. Drácula é o softpower perfeito porque jamais invade; ele espera o convite.

O vampiro anuncia sua presença, oferece charme, educação e promessa de maravilhas, até o instante em que cruza o limiar — e então o domínio muda de lado. O aristocrata que sai de seu castelo apenas para sugar o sangue do povo não é uma imagem bonita, mas a obra original é assim, independentemente do que a transformaram. Mas ele não faz isso sem consentimento.

Frankenstein nasce do excesso de confiança de quem acredita controlar aquilo que cria; não é o estrangeiro que ameaça, mas o próprio criador que perde o controle. Poe mostra que o perigo mora nas fissuras internas, onde a vaidade e a culpa se aliam para produzir monstros. Lovecraft vai ainda mais fundo ao insinuar que o verdadeiro horror é abrir um livro que não deveríamos, acessar um conhecimento que não sabemos digerir, tocar algo cuja natureza ultrapassa o nosso filtro.

Em todos esses casos, o medo não entra à força. Ele é admitido, convidado.

Hoje, o vampiro chega pela timeline. O monstro aparece no “aceitar os termos”. O horror cósmico se instala quando concedemos permissão para que plataformas decidam o que vemos, pensamos e desejamos. Nada disso é maldade. É engenharia. Mas engenharia sem vigilância vira invasão consentida.


Antropofagia: a ciência brasileira do limiar

Povos indígenas brasileiros, desde há muito, praticavam um ritual que misturava espiritualidade, política e antropologia: devorar apenas o inimigo capaz de acrescentar força. Não era violência gratuita; era cálculo. Era Spinoza antes de Spinoza. Comer apenas o que aumenta a potência. Rejeitar o que enfraquece.

A ideia ritualística é se transformar pelo outro sem ser transformado no outro. Oswald de Andrade apenas traduziu isso em manifesto, percebendo que o Brasil não se fortalece pela imitação, mas pela digestão criativa. Tudo o que chega — o jazz, o rádio, o barroco, o candomblé, a filosofia, a culinária, a cultura pop — entra, é mastigado e se transforma em outra coisa em um processo alquímico que só funciona bem se a escolha for boa.

Isso funcionou para os bandeirantes paulistas, que avançaram com uma mentalidade tupi e portuguesa. São Paulo falava Língua Geral, baseada no tupi, até o final do século XVIII e início do XIX, quando o Marquês de Pombal resolveu acabar com a festa. Eles avançavam onde o tupi era compreendido, onde alianças indígenas eram possíveis, onde saberes ameríndios liam a paisagem, onde a lógica territorial indígena fazia sentido — e o Brasil ficou desse tamanho continental.

Isso também funcionou bem para Gêngis Khan, o construtor do maior império contínuo da história. Longe de ser um simples bárbaro, ele sempre se interessava pelo que os conquistados faziam de melhor. Com os chineses, aprendeu agricultura, burocracia e máquinas de cerco; com os persas, a cartografia; com os comerciantes árabes, o sistema de crédito e as caravanas.

Gêngis devorava cultura e linhagens, pois, ao tomar esposas de povos conquistados, criava alianças, redes, legitimidade e mais pontes culturais. Hoje, estima-se que cerca de 16 milhões de homens carreguem seu cromossomo Y. Não é mito; é biopolítica de alta precisão que, com certeza, o rei Salomão aplaudiria.

Antropofagia em movimento, historicamente eficiente. Mas, após a Segunda Grande Guerra, algo mudou. A porta ficou aberta demais e o filtro, fraco demais. Perdemos a exigência seletiva que sempre foi marca de nossa força cultural.


Quando a digestão falha, a cultura adoece

Spinoza resume o critério: bom é tudo o que aumenta nossa potência; mau é o que a diminui. Simples e objetivo. Escolher cultura é como escolher frutas.

Um softpower antropofágico absorve técnicas, formatos, estéticas e tecnologias globais — não para imitá-las, mas para reorganizá-las segundo as próprias referências, gerando ativos de Propriedade Intelectual originais, com força para circular no mundo não como cópias tropicais, mas como produtos de um imaginário autêntico.

O país cresce. Os criadores ganham musculatura. As empresas constroem marcas sólidas. O público se reconhece no que consome. A narrativa deixa de ser importada para voltar a ser construída. Pense em novelas, depois em séries e, por último, em doramas.

O problema contemporâneo não é abertura — isso nunca foi um problema —, mas a falta de critério. Narrativas globais são consumidas com entusiasmo pueril, e a Propriedade Intelectual muitas vezes é vista como mera burocracia ou limitador de acesso. Criadores entregam seus personagens, formatos e catálogos sem se dar conta de que PI é o motor de toda forma de softpower.

A consequência é triste: países funcionando como filiais culturais. Seus criadores aculturados são reduzidos a fornecedores, diretos ou indiretos, de grandes estúdios e mercados — felizes quando conseguem um prêmio internacional. Mais síndrome de Estocolmo do que isso é difícil imaginar. E pensar que tudo começa com um simples “concordo”.


O limiar digital: a nova Jerusalém cercada

Na era analógica, uma porta bastava. Hoje, o limiar é difuso: vive nas playlists que moldam humores, nos algoritmos que ditam relevância, nos contratos de Propriedade Intelectual que muitos assinam sem ler, nos padrões estéticos que se impõem como naturais, nas interfaces que reorganizam nossa atenção.

A pergunta mudou de forma, mas não de substância: quem vigia essa porta? Quem compreende que cada aceitação de cookies, cada licenciamento irrefletido, cada “deixe-me personalizar para você” é um pequeno convite vampiresco?

A modernidade é cordial, polida e extremamente educada. Mas não é inocente — e muito menos bem-intencionada.


Ninguém governa um país que não governa sua porta

No fim, tudo volta ao limiar. Toda civilização que cai abre a porta antes. Toda cultura que se dissolve convida seu próprio enfraquecimento para entrar. Toda pessoa que se perde aceita, com um clique, aquilo que deveria ter recusado. Softpower não é violência — é sedução.

A Cabala chama isso de vigiar Yesod. Jesus conclama a vigiar e orar. Oswald chamou de antropofagia. As plataformas chamam de personalização. O mecanismo não muda.

Soberania — pessoal ou nacional — não é fechar a porta, mas saber a quem se abre. É reconhecer que cada “aceitar os termos”, cada “permitir acesso”, cada narrativa importada sem digestão é um convite a forças que operam com a paciência de impérios antigos e a precisão de algoritmos modernos.

Países nem sempre são derrotados por armas; tampouco povos são conquistados por exércitos. Sun Tzu dizia que esses são os piores caminhos. Povos são conquistados por histórias. Por isso, governar um país é controlar suas fronteiras — e governar a si mesmo, idem. É não se deixar dissolver na estética alheia.

A receita não mudou desde Pompeu, desde Drácula, desde os tupis, desde Gêngis Khan. Vence quem vigia a porta. Cresce quem sabe devorar — sem ser devorado por dentro.


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Nota de transparência: este artigo reflete análise editorial independente, com base em fontes históricas, filosóficas e culturais amplamente reconhecidas. Não houve patrocínio, interferência externa ou revisão por terceiros interessados.

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