“No creo en brujas, pero que las hay, las hay.”
Algumas disputas não desaparecem. Apenas aguardam que o mercado esteja pronto para resolvê-las. Em 25 de novembro de 2025, o Instituto Nacional da Propriedade Industrial declarou a nulidade administrativa do registro da marca “Charlie Brown Jr.”, com base no art. 124, XVII, da Lei da Propriedade Industrial. Menos de um mês depois, em 18 de dezembro, a Sony anunciou a consolidação do controle da Peanuts Worldwide em 80%.
Os fatos são públicos. As datas, inequívocas. Coincidências e destino escapam ao controle. Governança, não.
A antiga disputa pela marca “Charlie Brown Jr.”
Em 1997, surgem no INPI os primeiros pedidos relevantes para “CHARLIE BROWN JR.”, protocolados pela EMI Music Brasil Ltda., sob os números 819984361 (classe 09) e 819985791 (classe 41). Ambos terminam arquivados.
A tentativa inaugural foi corporativa, não doméstica. Guarde essa informação — ela não é detalhe.
A segunda onda, entre 2004 e 2005, repete o esforço e revela o padrão. Pedidos e variações — 826241700, 826241719, 827105673, 827265174, 827409389 — são indeferidos ou arquivados, inclusive quando subscritos por agentes diretamente ligados à banda. O sistema responde de modo consistente: o núcleo “Charlie Brown” é forte demais para ser contornado por um sufixo.
O ponto de inflexão ocorre em 2018, quando a Peanuts consolida no Brasil registros em vigor de “CHARLIE BROWN” em classes estratégicas, inclusive 41 (entretenimento): 914055445, 914055518, 914055577, 914055674, 914055828. A partir daí, a fricção deixa de ser direito autoral contra propriedade industrial; passa a ser marca contra marca.
Em 25/11/2025, o INPI torna explícito o que vinha sendo sinalizado por décadas: nulidade administrativa, restabelecendo a exclusividade do titular do personagem. O ciclo parece fechado, após quase trinta anos.
E ainda assim, algo chama a atenção.
Por que uma disputa antiga, tecnicamente previsível e já sinalizada pelo sistema há décadas explode como manchete nacional justamente agora?
Sony se torna controladora da Peanuts
Em 18/12/2025, a Sony anuncia a compra dos 41% que estavam com a WildBrain, elevando sua participação na Peanuts a 80% (os 20% remanescentes permanecem com a família Schulz).
A decisão do INPI precede o anúncio corporativo. Não há causalidade direta a sustentar — e isso importa ser dito. Ainda assim, o desfecho resolve um problema clássico de diluição marcária, algo que dificilmente passaria despercebido em uma due diligence profunda, multidisciplinar, típica de operações desse porte.
O que se pode afirmar com segurança: quando um ativo global entra em governança concentrada, o zelo por suas fronteiras deixa de ser reativo e passa a ser estrutural.
Tudo é dinheiro. E está tudo certo com isso.
Opinões não sustentam marcas ou movem interesses; números fazem isso.
Do lado Peanuts, comunicados históricos da cadeia DHX/WildBrain descrevem um programa global de licenciamento com vendas de varejo superiores a US$ 1 bilhão em determinados períodos, presença em dezenas de países e centenas de licenciados. Trata-se de infraestrutura econômica madura, não de nostalgia difusa.
Do lado Charlie Brown Jr., há evidência pública de exploração comercial. Em abril de 2022, a collab Santos FC x Umbro x Charlie Brown Jr. foi lançada com comunicação institucional do clube, tornou-se case de vendas e figurou como finalista do Licensing International Awards 2023. No varejo de moda, a Von Dutch Brasil mantém categoria dedicada à “Collab CBJR”, com produtos e campanhas próprias. A ABRAL noticiou a coleção Approve x Charlie Brown Jr., com intermediação setorial identificável.
Com a decisão do INPI, parte desse ecossistema pode mudar, a depender da postura da Sony — historicamente cautelosa e disciplinada na proteção de seus investimentos em propriedade intelectual. O alcance disso, apenas o tempo dirá.
Charlie Brown Jr. e o espelho de Duran Duran
A banda brasileira não foi a única a se inspirar em personagens para conceber nomes ou títulos. Ainda assim, o paralelo com Duran Duran ajuda a limpar o argumento.
A inspiração em Barbarella — mais precisamente no Doutor Durand Durand — nunca gerou conflito porque houve alteração gráfica e fonética, mas sobretudo porque não tocou o coração econômico de uma franquia global.
Referência cultural não é colisão marcária quando não projeta sombra sobre um programa bilionário de licenciamento. Na propriedade intelectual, como na física, o conflito depende da massa.
EMI, Sony e o retorno do início
Ouroboros — a serpente que consome a própria cauda — simboliza o eterno retorno. A imagem ganha densidade quando se observa que a mesma EMI que tentou registrar “Charlie Brown Jr.” em 1997 passa ao controle integral da Sony em 2018, com a aquisição da EMI Music Publishing.
A Sony desembolsou cerca de US$ 2,3 bilhões pela participação de 60% que pertencia ao fundo Mubadala, assumiu dívidas e tornou-se detentora integral do publishing — a camada mais sensível e estratégica do IP musical. Pouco depois, consolida também o controle da Peanuts.
Não é teoria conspiratória. É economia política da marca. O que poderia ser interessante para a EMI em 1997 não necessariamente o é para a Sony em 2025 — ainda que ambas tenham, em momentos distintos, cruzado o caminho de Charlie Brown Jr. em seus catálogos.
Nada pessoal. Apenas negócios.
Mercúrio sabia das coisas
Quando o mercado decide organizar símbolos, o mito não desaparece. Ele apenas muda de dono.
Hermes era Mercúrio para os romanos, forma como ficou mais conhecido. Há quem veja no caduceu de Mercúrio uma forma aparentada ao ouroboros. Talvez seja apenas coincidência. Ainda assim, é curioso que isso aconteça justamente com o deus protetor do comércio, das trocas e dos caminhos.
“No creo en brujas, pero que las hay, las hay.”
Leituras conectadas
Para quem acompanha os desdobramentos da governança de marcas, do licenciamento global e da economia política da propriedade intelectual, algumas leituras do Revisum ajudam a ampliar o quadro e aprofundar a reflexão:
OpenAI, Disney, Japão, bolhas e melancias
Entre acordos bilionários, fiscalização algorítmica e a reorganização silenciosa da propriedade intelectual na era da inteligência artificial.
Quando o estilo se torna marca
Sobre identidade, distinção e o momento em que a estética atravessa a fronteira e passa a exigir tutela jurídica.
Propriedade Intelectual — a garantia invisível
Uma leitura econômica da PI como lastro, ativo estratégico e instrumento silencioso de poder.
ENPI 2025–2027: PI como política de Estado
A propriedade intelectual como infraestrutura institucional e vetor de desenvolvimento nacional.
INPI, agência reguladora e o futuro da propriedade industrial no Brasil
Os limites, as ambições e as distorções de um sistema que deixou de ser apenas técnico.
Pokémon, patentes e o backlog brasileiro
Uma narrativa sobre cultura pop, eficiência institucional e os gargalos históricos da inovação no Brasil.
Rubens Baptista escreve sobre propriedade intelectual, estratégia e cultura.
Editor do Jornal da Propriedade Intelectual.

