GAME OF THRONES NO MUNDO DAS IAS

Disney notifica o Google, fecha com a OpenAI e o YouTube vira campo de batalha

Na mesma semana em que anunciou um acordo de licenciamento com a OpenAI — envolvendo investimento bilionário e autorização para o uso controlado de personagens em sistemas de geração de imagens e vídeos — a Disney moveu outra peça no tabuleiro. Notificou o Google por supostas violações de direitos autorais ligadas à inteligência artificial. O efeito foi imediato e visível: vídeos gerados por IA com personagens da companhia começaram a ser removidos do YouTube.

A disputa não é técnica, artística ou meramente jurídica. É estrutural e concorrencial. É guerra. Como em Game of Thrones, as casas passam a se mover com mais vigor, pois, o trono pode até estar ocupado — mas nunca está definitivamente garantido.

BETAMAX, VHS — E O NOVO NOME DO CONTEÚDO

Nos anos 80, a superioridade técnica do Betamax não foi suficiente para derrotar o VHS. A Sony manteve controle rígido sobre seu formato, enquanto a JVC abriu o VHS para diversos fabricantes. O resultado foi simples e decisivo: mais aparelhos compatíveis, mais títulos disponíveis, mais espaço nas videolocadoras. O mercado escolheu quem tinha conteúdo em escala.

A Sony aprendeu a lição — ainda que tardiamente. Sob a liderança de Kenichiro Yoshida, a empresa mudou de eixo e passou a investir de forma agressiva na produção de conteúdo, ou, se preferir, em propriedade intelectual. Ao longo da última década, destinou cerca de US$ 10 bilhões para consolidar seu portfólio de entretenimento.

Hoje, esses segmentos representam aproximadamente 60% da receita anual da Sony, contra cerca de 20% em 2010. Aquisições estratégicas, como a EMI Music Publishing e o Crunchyroll, fortaleceram sua capacidade de criação e distribuição. A lógica tornou-se clara: maximizar o valor de IPs consolidadas — Spider-Man, The Last of Us, God of War — e desenvolver novas. Quando um jogo se transforma em série de TV de sucesso, não é acaso. É estratégia.

Qualquer semelhança com os movimentos atuais da Disney e da OpenAI não é mera coincidência.

CASAS EM GUERRA: LICENCIAMENTO COMO SOBREVIVÊNCIA

Quando a Disney licencia para a OpenAI e endurece contra o Google, não escolhe um lado moral. Constrói uma aliança estratégica. Como nas guerras dinásticas — e como no jogo de Go — vence quem controla mais territórios. São eles que alimentam o exército e sustentam a riqueza.

No mundo das IAs, esses territórios também são catálogos. A questão central já não é se haverá uma corrida por licenciamento, mas quem ficará de fora dela. Os grandes estúdios tenderão a resolver suas posições por meio de acordos, porque não há alternativa racional. Para compreender isso, basta observar um fenômeno ainda recente: o streaming.

Lembra do Napster, o avô do Spotify? E da Blockbuster, a avó da Netflix? Produtores de música e audiovisual não migraram alegremente para essas plataformas. Foram empurrados pelas circunstâncias. Cada um construiu alianças, modelos e defesas — e o sistema que temos hoje nasceu dessa fricção.

NETFLIX: DISTRIBUIÇÃO X CONTEÚDO

A Netflix não começou como estúdio. Começou como canal de distribuição. Ao acachapar a Blockbuster, mostrou que a tecnologia podia derrubar um império ao tornar o acesso mais simples, barato e conveniente. O público migrou. Os estúdios, sem alternativa imediata, seguiram a audiência. Durante um período decisivo, a Netflix tornou-se o grande salão comum do entretenimento audiovisual.

Mas esse equilíbrio era instável por definição. A Netflix distribuía, mas não controlava o território. Os catálogos pertenciam a terceiros. Quando o streaming deixou de ser promessa e virou mercado maduro, os estúdios perceberam o óbvio: quem controla a janela controla o valor. Disney, Warner, NBCUniversal e outros recolheram conteúdo, encurtaram licenças e elevaram preços.

O licenciamento não desapareceu, mas tornou-se mais raro, mais curto e mais caro. A Netflix voltou a viver sob uma sombra conhecida: uma base massiva de usuários e a ameaça constante de escassez de conteúdo. A situação lembrava, com precisão desconfortável, o dilema da Sony na era do Betamax.

A resposta foi a mesma: deter a produção.

A Netflix passou a investir agressivamente em conteúdo próprio não por vocação artística, mas por sobrevivência estratégica. Produzir significava transformar custo variável em ativo, janela temporária em patrimônio, dependência em poder de barganha. O conteúdo original não substituiu o licenciado. Passou a coexistir com ele. Um garante volume e o outro soberania.

Essa transição não apenas salvou a Netflix da asfixia como redefiniu o mercado. Ao se tornar estúdio, a plataforma deixou de disputar espaço apenas na prateleira digital e passou a disputar poder estrutural. Quem produz decide quando, onde, por quanto tempo e como distribuir. Quem apenas distribui vive sob a ameaça permanente de ficar sem ter o que exibir.

Isso antecipa o que ocorrerá no mundo das IAs quando as grandes questões de licenciamento e treinamento estiverem resolvidas: quem perder a corrida do licenciamento terá de produzir o próprio conteúdo. Como será produzido é outra questão a ser respondida.

O TRONO NÃO É A MELHOR IA. É A MELHOR PI.

A disputa ainda é narrada como corrida tecnológica. Mais parâmetros, mais GPUs, mais talento técnico. Mas, com concorrentes cada vez mais parelhos, fica evidente que o fator decisivo será outro — novamente, o conteúdo.

A propriedade intelectual não desaparecerá na era da inteligência artificial porque ela é o elemento central da concorrência. O trono não pertencerá à IA mais elegante, nem à mais potente. Pertencerá àquela que caminha cercada de conteúdo, contratos e legitimidade.

Você tem alguma dúvida disso? Coloque uma lanterna na popa e enxergue o futuro!


Para aprofundar — Leituras conectadas no REVISUM

Para quem acompanha esse debate, outras leituras ajudam a ampliar o quadro.

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